Ela
Vera D'Araio
Bateu a porta com tanta força que fez o pequeno gato cinza claro afundar a cara nas
almofadas do sofá encardido.
Não era a primeira vez que sentia essa intensa necessidade de gritar até ficar rouco e
despejar um turbilhão de verdades que foram deixadas de lado.
Nada fez.
Preferiu ligar o computador e trocar aquele silêncio invasor por um zunido baixo e
constante, típico das máquinas que desejam ser trocadas em breve, e isso o incomodou,
principalmente por causa da luz que vinha daquela tela imóvel e branca, terrivelmente
branca.
Que pavor lhe causara a cor branca!
Como poderia haver no mundo uma cor tão insolente, capaz de clarear aquilo que deve
permanecer nas trevas.
Precisava fazer alguma coisa!
Resolveu encarar a tela e escrever um pouco, assim aquele branco se dissiparia e ele
ficaria mais calmo.
"Acho que estou tendo alucinações" pensou, enquanto escrevia com dedos
trêmulos, seu próprio nome, num ritual desordenado.
Ficou com medo das palavras e seus significados... Logo ele: um escritor que passara a
vida inteira entrelaçado entre frases e letras!
No canto inferior da tela branca, viu que faltava um minuto para as três da manhã, e que
a brancura da tela havia aumentado.
Tensão.
Lembrou-se de Janaína, de seu riso fácil e da última coisa que havia dito antes de
abandoná-lo: "Você é louco", a frase ecoava em sua cabeça desde o instante
em que ela fechou a porta delicadamente e definitivamente.
De repente, como num passe de mágica, uma estranha idéia pousou em sua mente.
Iria se livrar de seu computador velho e da maldita tela que iluminava sua cara de
desespero.
O que diria para os vizinhos?E para o síndico rabugento?
Ao olhar para a tela em branco, o escritor se deu conta de que não tinha mais nada a
dizer.
E apenas uma a fazer.
Seria o duelo final e lhe daria muito prazer: exterminar a maldita tela branca que
refletia o fracasso de um homem que fez das palavras um veneno letal.
Abriu a janela e um golpe de ar frio o encorajou a colocar um ponto final naquela tortura.
Começou com as menores partes da máquina: mouse, teclado, enfim, parte por parte sendo
jogadas pela janela e destruídas pelo asfalto
Por fim abraçou a tela em branco, que ele caprichosamente deixou ligada na tomada.
Quando a viu se espatifar na rua vazia, teve uma terrível certeza: não poderia viver sem
ela, a tela!
Instintivamente, pulou.
E misturou seu sangue e sua carne com plástico, vidro e fios.
Agora, finalmente, eram um só.
E-mail: veradaraio@ig.com.br
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