Cartas ausentes
Tiago Muzulon
Trazia consigo uma flor de afeto na lapela; pequenas algibeiras costuradas por fora com
pregas finas sobre as calças, caminhava a passos descuidados, saltitantes, feliz por
estar indo pra casa encontrar sua mãe que lhe preparava a refeição.
Amorim se rejubilava com as carícias viçosas de sua mãe. Contava a ela, todos os dias,
como havia sido no colégio, qual das frutas havia comido primeiro, quais colegas haviam
pedido teco (*), as
lições de casa. O orgulho de Henriete era abundante por seu filho, não lhe media
gracejos.
À noite, deitava-se em sua cama para ouvir fábulas. Henriete passava uma, duas, às
vezes até três horas contando estórias; não se incomodava em permanecer ali,
desajeitada, fabulando ao seu filho o quanto fosse necessário para que o sono o
alcançasse.
Eram tempos de guerra, o pai de Amorim fora enviado em uma das tropas para campos
longínquos, todo mês escrevia-lhe cartas recheadas de atenção, tentando amenizar seus
terrores através das meiguices que destinava ao filho. Os versos eram para sensibilizar a
vida do filho ao mesmo tempo em que humanizassem seus dias de guerra.
Amorim sentia falta do pai, mas a mãe estava sempre presente, não permitia que se
sentisse desamparado um momento sequer.
Os anos foram passando, os natais, as páscoas e os aniversários eram sempre sublinhados
pela ausência do pai, que restringia sua presença e participação a uma carta por mês.
Amorim revelava-se cada vez mais inconsolável, as lembranças do pai tornavam-se-lhe
vagas; fragmentos de palavras contidas em cartas antigas se confundiam com frases orais
ditas em breves períodos já remotos. Aos poucos, o pai ia se desfazendo na memória como
o vapor da chaleira que se desvanece ao cessar da chama.
*
Um longo e rigoroso inverno molestou a região naquele ano, foi o natal mais impróspero e
triste de todos; Henriete não mais conseguia abrandar Amorim, que já se fazia crescido e
inquieto com todos os atributos que lhe eram devidos à idade. O dinheiro minguava com as
dificuldades que o país passava em guerra e com a falta do marido. Ao cabo do mês de
Abril, o sol timidamente começou a surgir, trazendo consigo algum calor, expulsando a
neve e a neblina, convocando as flores a apresentarem-se diante dele, com toda a
solenidade e respeito que lhe era devido e só elas sabiam fazer com seus desabrochos.
A frieza de ânimo, de Amorim e da mãe, era sutilmente enganada por essas gentilezas da
natureza, que lhes atraíam e lhes compraziam. Em agosto, Amorim partiria para a escola
normal superior da capital, já estava em idade avançada e não podia esperar mais pelo
pai, que mantinha-se fielmente remetendo as cartas todos os meses. A guerra se delongara
muito e o pai perdera todo o amadurecimento de Amorim.
No último dia do mês de julho, já terminando seus preparativos e prestes a partir,
Amorim recebeu uma carta que havia sido postada por outra pessoa; de fato, já tinha
notado certa demora no recebimento da usual missiva do pai, mas não tinha se preocupado,
pois logo partiria e depois tomaria informação, através da mãe; além de que, o atraso
podia ser uma falha do serviço postal, que às vezes se enganava.
Abriu o envelope cautelosamente, não disfarçando certo receio, e leu a mensagem em voz
alta.
Enquanto percorria as palavras datilografadas naquele papel timbrado com a insígnia do
exército, seus olhos não compreendiam seu significado, eram palavras soltas, esparsas,
que somente no fim da carta adquiriram algum sentido e algum sabor. Amorim sentou-se no
sofá a fim de amparar o corpo, a mãe se aproximou timidamente, se abraçaram e Amorim
disse que o pai estava morto, num tom de conclusão. Morrera em uma das últimas batalhas
da guerra, que agora já havia se encerrado.
(*) pedido um pedaço
E-Mail: tiagomuzulon@yahoo.com.br
Blog: http://www.minhaodisseia.blogspot.com
|