Limpezas
Sara Santos Silva
Quando a mãe lhe perguntou o que estava a fazer respondeu, ainda remexendo no estojo, com
o ar mais distraído do mundo "Estou a pintar a minha alma". A mãe arqueou as
sobrancelhas dos olhos esbugalhados num primeiro medo de demência infantil, mas depressa
encolheu os ombros zombeteiros e continuou a aspirar o tapete.
O miúdo, inclinado sobre a mesa, de língua de fora e joelhos fincados na cadeira,
travava a luta da sua vida com uma folha invisível. Fazia pressão para baixo, depois
puxava para a direita, inclinava para a esquerda até que, num golpe de mestria, cravou os
cotovelos, esfolados de outras lutas, na mesa e sossegou. Sem nunca tirar os cotovelos da
superfície de madeira escura, tirou o lapis de cera mais pequenino da caixa. Pintou a
folha invisível com grandes pinceladas de laranja-água e desenhou duas bolinhas
paralelas e um sorriso logo abaixo a vermelho-carvão.
De repente, deixou-se escorregar da cadeira e com o ar mais cansado e aliviado que alguma
vez se viu num miúdo, disse: "Já está. Agora que a vejo nunca mais a perco."
E saiu.
A mãe, malabarista de canos de aspirador e panos do pó, num relance de inspectora de
higiene e limpeza, gritou horrorizada ao ver a mesa pintada com lápis de cera. Borrifou
um pano com líquido apaga-tudo e apagou a alma do miúdo.
(Foi mantida a grafia original)
E-mail: sara-santos-silva@hotmail.com
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