Relato breve
Saul Melo
Desisto de ser gentil; sempre me impus, seja por formação ou por puro condicionamento
social, o dever de cumprimentar de forma educada os demais moradores do condomínio, os
vizinhos da mesma rua. Mas parece que passei a viver no meio de estranhos, pois já não
recebo de volta nem um leve movimento de cabeça que indique intenção de corresponder ao
meu gesto.
Quase perdi a conta do tempo em que moro aqui mais de quarenta anos fui o
primeiro a me instalar no prédio, atraído pelo silêncio e jeito interiorano dessa rua
sem saída. As árvores, já crescidas naquela época, entreteciam uma espécie de túnel
onde a luz solar teimava em se fazer presente em retalhos tímidos, gerando a impressão
de pequenos holofotes presos aos galhos mais altos. Na época, recém casados, eu e Luiza,
tudo era novidade. Recebíamos amigos com freqüência, a vizinhança era agradável e
tudo parecia indicar a duradoura sensação de viver num paraíso urbano.
Mais tarde os dois filhos vieram expandir a certeza de que encontráramos a fórmula ideal
de bem viver. Pena que foi tudo muito rápido; eles cresceram, estudaram, tomaram seu rumo
e devem estar felizes, embora eu já não receba qualquer notícia.
Depois perdi Luiza, tive que me habituar à nova realidade, aos dias mais longos e a falta
dos amigos que também se foram. A partir daí a memória passou a me trair, pus-me a
confundir datas e a ordem dos fatos. Mas não me queixo, tive ótimos momentos e não saio
daqui por nada desse mundo embora as coisas tenham mudado bastante. Talvez a velhice e a
solidão tenham me tornado ranzinza, introspectivo, sabe lá ninguém gosta de
conviver com gente assim.
O túnel formado pelas velhas árvores ganhou espessura e tudo agora parece imerso num
crepúsculo aconchegante, ou são meus olhos fracos que percebem desse jeito. A idade não
impede minha locomoção, pelo contrário, parece que me devolveu agilidade e
resistência. Caminho por horas a fio, sem qualquer vestígio de cansaço, de dia ou de
noite, faça sol ou chuva. Também não tenho nenhuma preocupação com a segurança,
verdadeira paranóia de todos os que vivem nas cidades; nunca sofri danos ou ameaças em
todos os bairros por onde andei.
Quando retorno ao meu velho apartamento é por pura saudade de cada canto, de cada objeto,
dos móveis velhos, das fotos onde estamos todos bem, onde me reabasteço de sorrisos e
afetos antigos antes de vagabundear por aí.
A partir de agora, ao sair ou chegar, esquecerei as boas maneiras, farei de conta que não
conheço ninguém e nem vou me preocupar em esconder certos truques que aprendi há alguns
anos, como por exemplo, atravessar a porta de entrada com naturalidade sem precisar
carregar as incômodas chaves.
Saul Melo, autor gaúcho (1.943), publicou contos no jornal literário
"Folha de Letras", do qual foi sócio fundador. Também participou das
antologias "101 que contam", "Histórias de quinta" e
"Brevíssimo", todas organizadas por Charles Kiefer. Acaba de lançar seu
primeiro livro individual "Vestígios dela e outras histórias". O texto
que publicamos fará parte de seu segundo livro, em fase de organização.
E-mail: smmelo@terra.com.br
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