
Raymundo Netto nasceu
em Fortaleza, Ceará, em 1967. Graduou-se em Fisioterapia, com especialização em Saúde
Pública e Administração Hospitalar. Através da Casa Amarela Eusélio Oliveira da
Universidade Federal do Ceará, em 1995, criou e dirigiu o curta em animação "Hogro
- Homenagem aos 100 anos do cinema", sendo indicado para festivais. Como quadrinhista
e roteirista também foi premiado. Criou as tiras em quadrinhos "Os Fitomanos",
ainda inéditas. Em 2004, foi vencedor do "IV Edital de Incentivo às Artes da
Secretaria de Cultura do Estado do Ceará", na categoria romance, com "Um Conto
no Passado: cadeiras na calçada". Faz parte do Conselho Editorial do CAOS Portátil
- um almanaque de contos - e tem contos e crônicas publicados em revistas impressas e
eletrônicas no Ceará e em outros estados do Brasil. |
O Álbum de Fotografias
Raymundo Netto
As cinzas da noite espalhavam em brasa no quarto de Cícera.
Toda a solidão de uma vida oprimida entre suas coxas lhe ardia. A televisão a convidava
para comprar uma nova marca de detergente, sabonete e palha de aço. Mas, para viver a sua
vida nunca, never more.
Casara cedo, muito jovem e tola. Não conhecia nada da vida. Cria no noivo, experiente e
de olhar interessado, penetrante... Acreditava que ele poderia fazê-la a mulher mais
feliz do mundo. Não o conseguiu. Teria sido sua culpa?
Há anos, reclusa à vida doméstica: passava, encerava, cozia, pregava botões e cerzia
as meias. Em troca de quê? Todos os dias, rádio na cozinha, lamentos sonoros de amor
eterno respingados a óleo quente da frigideira, comida no forno, lavagem de cuecas e
muita, muita, muita vista grossa...
À tardinha, com almofadas embaixo dos cotovelos, reclinava-se à janela sisuda a comparar
a sua vida com a dos passantes. A visão de uma mulher magra e jovem lhe era imperdoável,
capaz de estragar até o fim de semana. Roia as unhas.
Revolvia gavetas, revolvia gavetas, procurando nem ela sabia o quê. Chorava nos portais
da cozinha. Chorava por detrás das portas. Chorava. Cheirava esmaltes. No banho, perdia
horas se ensaboando, se esfregando, catando o surro, sensação de sujeira, muita sujeira.
Cuidava das plantas no jardim, matava formigas, caçava baratas, limpava ratoeiras...
Um dia, recebeu um telefonema diferente: seu marido sofrera um grave acidente. Morrera!
Solicitavam-na para fazer o reconhecimento do corpo.
Desligou o telefone e poisou-o no console. Não chorou. Não sabia o que pensar. Não
sabia o que fazer. Não sabia para onde ir. Não sabia a quem procurar. Não sabia nada de
coisa alguma.
Foi ao quarto, ficou de quatro e pegou embaixo da cama uma encadernação vermelha
amarrada com uma fita puída. Abriu-a. Era um álbum de fotografias. Pequeno, feito de
cartolina, comido por cupins, cada página separada por papel manteiga amarelado. As
fotos, à medida que passava as páginas, caíam pesadas. Ela as recompunha. Fitava-as.
Não, não as reconhecia, não reconhecia nada e nem ninguém. Sorriu aliviada e gargalhou
com uma estranha sensação de liberdade.
E-Mail: raimundo.netto@globo.com
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