Más companhias
Rogério Ivano
Pedro Borges queria ser um mero espectador da vida. Dezenas de vezes teve a oportunidade
de deixá-la passar, ilesa, livre, mas não conseguia controlar seus impulsos e sempre
acabava por retê-la entre os dedos. No último minuto, quando já era uma sombra ínfima,
uma nesga de luz, Borges se agarrava à vida, às vezes com a ponta das unhas, e a trazia
para perto de si. Bastava um leve sopro, um tique no canto do olho, uma fagulha ou um odor
estranho e lá estava ela, insistente, espezinhante, atenta ao menor rumor da sua
existência.
Toda vez que isso acontecia, Borges sentia um remorso, uma coisa ruim, um forte enjôo
atacar-lhe as vísceras. Corria então para o banheiro, se desafogava e ficava prostrado
à beira da pia por horas, arfante, com os bofes ainda na garganta. Automedicava-se,
tomava xaropes, preparava infusões, chás de folhas amargas e raízes secretas. Chegou
mesmo a recorrer de antigas simpatias, mas sem sucesso. Com isso, rejeitou também as
rezas e os conselhos dos mais velhos.
O estado de Borges piorava. Sua reclusão aumentou, tornou-se mais taciturno, nunca mais o
viram no mercado nem na praça, onde costumava passar rapidamente entre os transeuntes,
feito um fantasma. Evitava ser reconhecido, mudava o lado da rua para fugir de um bom-dia,
uma piscadela, um esbarrão. Tinha as janelas da casa muito cerradas, os portões fechados
com grossa corrente, o mato a tomar conta do quintal, exalando um ar propositado de
ausência e abandono.
Era uma quinta-feira ao fim da tarde, Borges caçava uma irritante penumbra que se
esgueirava pela sala quando escutou o trinco da porta girar, astuta e sorrateiramente.
Logo adivinhou quem era. Aos berros, maldisse, xingou, pediu aos prantos que o deixasse
sozinho, que não o procurasse mais. Mau abriu uma fresta, porém, lá estava a vida lhe
sorrindo. Borges não se conteve, puxou-a bruscamente para dentro.
Todo o quarteirão veio saber do escândalo, ouviram móveis sendo quebrados, vidros
estilhaçados, tapas e gemidos. Foi tamanho o qüiproquó que falaram até em encenação.
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