
Marcelo Moraes Caetano é carioca, pianista clássico, com
prêmios no Brasil e no exterior, tradutor de inglês, francês e
alemão, e escritor com vários livros publicados, no Brasil, Estados
Unidos, Suécia, França e Inglaterra. Entre eles, "A clara de ovo"
(editora 7Letras, 2003), "Cemitério de Centauros" (SENAI-FIRJAN,
2007, obra premiada como melhor livro de poesias inédito da XIII
Bienal Internacional de Literatura do Rio de Janeiro), "The white
fast egg" (Pg Editors-USA, 2009), Försiktighetsprincipen, Arbete,
eller Konste Kentaurer Kyrkogård, DMOZ , 2009, "Solidariedade"
(ONU-UNESCO, 2005, edição trilíngue, Brasil, França, Inglaterra),
"Educação" (ONU-UNESCO, 2006, edição trilíngue, Brasil, França,
Inglaterra), "Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa" (Editora
Ferreira, 2009), "Romances de entressafra" (Editora Vivali, 2005),
"A humanidade na Arca de Noé" (Editora Vivali, 2005), "Gramática
para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), "Literatura
Brasileira para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009),
"Redação para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009). É
especialista em Educação e Tecnologia pela Universidade Federal
Fluminense, Mestrando em Estudos da Linguagem pela PUC-RIO e
pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq.
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A flor que meus olhos não quiseram esquecer
Marcelo Moraes
Caetano
Para Antonio Carlos Secchin
Fazia um calor ameno sobre a velha rua da cidade. As pedras
colocadas há muitos séculos por mãos escravas arejavam o pavimento
com pequenas gramíneas que lhes nasciam no entorno. Eram ruas de
pedra, mas não tinham absolutamente a dureza pétrea que um clichê
desatento ou insensível poderia tentar impor-lhes. Porque eram ruas
de pedra lubrificadas por ervas, gramas e flores minúsculas e
delicadas. Dois reinos da natureza — o mineral e o vegetal —
casados, germinando um elemento de mistério e silêncio.
Essa clareza, mesmo à noite, sob os antigos lampiões a gás, ora
iluminados por anacrônicas lâmpadas elétricas, dava às ruas da
cidadezinha um aroma antigo, um cálido aroma antigo, um nostálgico
aroma antigo, à moda dos cavalheiros e das damas de porcelana que se
tem, amiúde, sobre cristaleiras indianas de madeira e madrepérola.
Eram ruas feitas de pedra, mas que negavam a matéria-prima
impudicamente: até para pisá-las era preciso cuidado, ou se
quebraria o bibelô que lhes tornava os pedregulhos pequenos
verdadeiros biscuits torneados a mão, um delicado e gentil par de
mãos artesãs.
Três horas da madrugada. Os cães dormiam (já haviam desistido de
todos os gatos). Os gatos escondiam-se tão bem entre os telhados e
os muros, que se tornavam invisíveis. De vez em quando um apito bem
breve e baixo dava o sinal da tranquilidade, que, portanto, deixava
de ser discreta e lembrava a todos, contundente, o quanto era
importante. E sumiam-se por dentro de uma viela de pedra, a
tranquilidade, o guarda, seu apito e o cassetete que já nascera
aposentado.
Em uma ou outra calçada se viam cadeiras, reminiscências das
conversas que o dia ouve e produz. Eram cadeiras mortas, então.
Cadeiras sem ninguém não passam de folhas ao vento. E se vão. Havia
também alguns brinquedos sem criança.
Todas dormiam.
Algumas davam trabalho; outras, nenhum. Dormiam todas, entretanto.
Algumas janelas ficavam abertas para deixar o vento entrar.
Escapavam delas cortinas gázeas de algum tecido bem diáfano, que nem
sequer devia ter nome, pela sua essência de alma feliz.
E, por sinal, havia também almas andando pelas ruas. Silenciosas,
algumas; brincalhonas, outras; melancólicas, solitárias; alegres,
aos pares ou grupos. Almas dos antigos da cidade. Antigos prefeitos,
capitães-mores, delegados, juízes, escravos, escravas, capatazes,
sinhás, sinhôs, crianças, avós, boticários, barbeiros, comerciantes
– hoje todos iguais e conversando sem “Vossa Mercê”, “Excelência”,
“Doutor”... Nada: apenas almas igualadas pela mesma terra e pelo
mesmo ar, indiferentes às matérias-primas de suas lápides – mármore?
granito? madeira? barro?
Tudo igual. Almas passeando iguais, como são iguais início e fim de
tudo o que vive.
Eu sou a única pessoa viva a andar pelas ruas a esta hora. A noite
me encanta, me seduz e me chama com seus olhos de coruja e seu
coração de pérola gigante. A noite me quer. Que posso fazer?
Observar em silêncio os seus sussurros, e deduzir dali todas as
vidas que a perpassam. Mesmo as almas que desfilam pela noite são
vidas que a perpassam, porque a vida nunca se extingue. E eu, que
posso fazer?
Já faço. Conheço um pouco desta cidade, mas um pouco, para ela, é
muito. É muitíssimo. É tudo. Porque nesta cidade não tem muito o que
saber. Quem sabe um pouco, então, já sabe tudo. Sei que a mulher
daquela janela aberta, com um contorno amarelo desbotado, não ama
seu marido e quer trocá-lo pelo entregador da farmácia e seus
dezesseis anos de idade.
Sei o quanto dói àqueles pais da casa de porta roxa saberem que seu
filho mora tão longe, numa cidade perversa, grande e malévola.
Sei que as duas senhoras que moram atrás daquele portão de grades
verdes são as últimas que conhecem o segredo antigo dos rendilhados
de linha feitos a mão.
Sei o tamanho do sonho daquele menino de varanda branca. Conheço as
vontades secretas da menina da casa azul. Conheço também a mãe do
guarda que apita por trás do muro baixo de hera com gerânios e
violetas.
Paro diante da igreja e observo (o que mais eu posso fazer?) duas
almas de mãos dadas entrando para rezar. Pode ser que haja uma missa
exclusiva para as almas às três da manhã.
Pode ser que a alma de algum padre celebre o banquete de Cristo e as
almas paroquianas comunguem da eucaristia cheias de fé e devoção.
Quem saberá o que faz essa procissão de almas com véus e velas
entrando na igreja àquela hora?
Por que velam?
Quero participar, mas sei que não fui convidado: não tenho o
privilégio delas. Então, muito delicadamente, em completo silêncio,
abaixo-me. Entre as pedras do pavimento da rua, pequeninas,
arredondadas e com o desgaste da erosão dos séculos que as enche de
brilho, como pequenas pérolas brutas, retiro a mais branca flor que
vejo nascida entre as frinchas da rua.
É tão branca, tão branca, que retine à luz do luar, e as almas em
procissão se viram para mim, vendo-me pela primeira vez. Uma ou
outra cochicha algo, certamente estranhando a minha presença que, só
agora, elas perceberam, e que soa errada naquele instante e naquele
lugar.
Vou até a porta da igreja. As almas estão assustadas comigo. Estão?
Não me reconhecem, mas eu sou um filho da cidade, como elas. Pouso a
miúda flor sob o degrau da igreja.
Vou embora. Está muito tarde. Quero dormir.
Talvez amanhã a mulher da janela amarela desbotada tome uma decisão
e se separe logo do marido. O garoto da farmácia não há de querer
esperar muito. Garotos são afoitos. Sonhos são famintos. Saudades
falam alto.
Desejo que tudo aconteça enquanto é tempo. A minha parte – eu farei.
Espero que aquela flor que eu sacrifiquei, espero que seu sacrifício
tenha valido a pena...
Marcelo Moraes Caetano é carioca, pianista clássico, com
prêmios no Brasil e no exterior, tradutor de inglês, francês e
alemão, e escritor com vários livros publicados, no Brasil, Estados
Unidos, Suécia, França e Inglaterra. Entre eles, "A clara de ovo"
(editora 7Letras, 2003), "Cemitério de Centauros" (SENAI-FIRJAN,
2007, obra premiada como melhor livro de poesias inédito da XIII
Bienal Internacional de Literatura do Rio de Janeiro), "The white
fast egg" (Pg Editors-USA, 2009), Försiktighetsprincipen, Arbete,
eller Konste Kentaurer Kyrkogård, DMOZ , 2009, "Solidariedade"
(ONU-UNESCO, 2005, edição trilíngue, Brasil, França, Inglaterra),
"Educação" (ONU-UNESCO, 2006, edição trilíngue, Brasil, França,
Inglaterra), "Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa" (Editora
Ferreira, 2009), "Romances de entressafra" (Editora Vivali, 2005),
"A humanidade na Arca de Noé" (Editora Vivali, 2005), "Gramática
para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), "Literatura
Brasileira para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009),
"Redação para o Vestibular" (Editora Elite-Maria Anézia, 2009). É
especialista em Educação e Tecnologia pela Universidade Federal
Fluminense, Mestrando em Estudos da Linguagem pela PUC-RIO e
pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq.
E-mail:
mmcaetano@hotmail.com
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