Por um punhado de sal
Luciano Silva
Fico anos a fio no esquecimento de algo que aconteceu em determinado momento da vida.
Severino aguardenteiro, e a sua família, por exemplo, apareceu de repente. Estava lá
atrás da memória e, sem aviso, por meio de um brilho fosco de metal, apareceu-me com as
suas estórias. Prosa boa, e silenciosa, a dele. Serviu para construir as imagens da minha
primeira infância, e moldar-me o espírito e os pés neste mundo.
Homem simples, meu avô. Era do certo. Fazia o que tinha que fazer. Saia de casa e, com
duas burras abarcadas de cachaça, voltava dias depois, após abastecer os comércios
locais. Nessas idas e vindas ouvia muito, falava pouco, e ria (quando ria) com a miudeza
de quem tem o espírito calejado pelas noites frias e os dias abrasadores do nordeste
paraibano. Da sua juventude, apenas algumas estórias, que outros contavam.
Certo dia, moleque ainda, enganchou-me nas pernas, abriu exceção, e contou, por simples
contar, que um grupo de famigerados - conhecidos assim pelas forças da legalidade
getulista - chefiado por um de alcunha de diabo loiro apareceu nas terras do seu pai.
Estavam mortos de cansaço e de fome, e vinham a limpar o rastro com os chapéus de aba
larga, rodopiando no chão, misturando seixos e levantando poeira da terra. Em casa, ele
só, e a mãe, que esperava o pai voltar do roçado. Então, fez o do costume: recebeu-os
com aguardente, rapadura e prosa amigável. Tratou o chefe do bando, respeitosamente, por
meu capitão e não deixou de responder às necessidades
do momento. Sua mãe preparou o que tinha mais à mão e serviu paçoca, peixe seco
torrado na brasa, farinha de mandioca e pequenos cajus para tirar o gosto da cachaça.
Isso tudo era dito com alegria nos olhos e maciez no falar. Mas parou, num silêncio
prolongado, e não disse mais. Calou-se, como se fizesse agravo à memória de alguém,
pôs o olhar no céu, e na cara uma expressão desconhecida. Parecia tristeza, melancolia,
achei. Depois foi então, com o tempo, que vi que não se tratava disso: coisa difícil de
explicar, mais ainda de entender: nostalgia. Não era voltar nos transcursos do tempo, e
viver o já vivido: não era saudade. Uma tristeza feliz, isso sim. Nostalgia: o passado,
bom ou nem tanto, em misturado, como simples lembrança do vivido, despertando uma alegria
triste.
Mas a estória inacabada, sem sentido, martelou à minha cabeça por algum tempo. Não por
ela em si, ou curiosidade do desfecho, mas pela expressão do rosto magro que encerrou o
inacabado. Quis saber.
Depois, de esgueira, perguntando por perguntar, dando de menino cacete, obtive que naquele
dia o sobredito capitão fez as preces. No chão, ao lado dos tamboretes, os chapéus e os
bissacos descansavam, juntos aos donos, que não largavam as cartucheiras e as armas,
sempre junto ao corpo. Dada a ordem, com a cabeça, iniciou-se o comer. Minutos depois,
após devorar metade da paçoca, um dos cabras jogou o sobejo e o prato no chão,
levantando-se.
Diacho, comida sem sal é dose, murmurou por entre os dentes.
Suspenderam o mastigar, uns, e olharam para Azulão; outros, pro capitão. O coração da
mãe do meu avô gelou quando ele se levantou de pronto e, com as duas mãos apoiadas na
mesa, disse fitando nos olhos:
Desculpe, mas isso não é problema.
Sem pestanejar, continuou:
Mãinha, traga o saco do sal.
Homem duro, o meu avô, disseram. Não era molambo, fazia o que tinha que fazer por si
só, quando queria. Não nasceu, não morreria molambo. Aprendera com seu pai: se alguém
fincasse pé, levantasse; se lhe estendesse a mão, apertasse; se lhe pisasse,
quebrasse-lhe a cara. E agora aquilo. Pensou em propor amarrar as camisas. Mas desistiu.
Sua mãe, velhinha, não suportaria a arenga. Perguntei que era isso de amarrar camisas.
Explicaram-me: prática simples, rude até, mas cheia de significações, que servia para
lavar ofensa, apagar manchas na honra, fincar-se na existência de forma transitória mas
respeitável: sem bate-boca, dois se enfrentam, atados pelas vestes, facas na mão. No
mais das vezes, ambos extinguiam-se no enfrentamento. Talvez por isso a vida no
agreste, aquela época, fosse vivida com mais sabor, apesar das adversidades. Vida
simples, mas com propósito. Quanta diferença dos homens de hoje, das cidades, dos cafés
e praças de jogos!
Veio o sal. E Severino, com seus dezessete anos, cara fechada, de igual para igual, disse
ter pouca coisa em casa, mas o que tinha seria deles. Só queria respeito, em casa de sua
mãe, na ausência de Domício Catão, seu pai. Azulão, sempre afoito por sangue, olhou o
capitão, querendo licença. Corisco observava em silêncio. Até que falou:
Severino, se apoquente não. Peço desculpas. Pena estarmos noutra época. Bom
seria ter cabra do seu talhe comigo, no bando. Quanto a você, cabra disse enquanto
olhava para o desaforado , respeite quem lhe deu teto, prosa, cachaça e lhe matou a
fome. Sente e coma... Tudo!
Azulão pegou o prato, contrafeito mas resignado, e voltou à mesa. O capitão
levantou-se, inesperado, como raio:
Cabra safado! Tua fome não é de comida, cão dos infernos. Capitão, mas...,
balbuciou o cangaceiro. Neste momento os demais baixaram os olhos e continuaram no
desjejum.
Vai comer o todo do sal em agradecimento ao jovem Severino, e não tem peleja!
Não teve. Dito e feito: comeu. Era o exemplo, disseram. A ordem, cumprida, não foi por
maldade de coração, nem tanto para humilhar, menos ainda para demonstrar liderança e
poder; mas, sim, para exemplar, para lembrar que o de bom grado dado deve, de bom grado,
ser recebido. Por fim, os cabras beberam a última dose de aguardente. Azulão esperava na
soleira, manchando a terra, cuspindo os bofes, apoiado no cabresto de uma égua. Partiram.
Com Severino, ficou, presenteado por Corisco por não abrir mão de um punhado de
sal, que é muito em questão de honra , um fura-bucho, um sangra-cabra, um brilhoso
de um punhal de inox, natural de Caroca, em Campina Grande. Esse foi o miúdo contado e
ouvido, e a gastura que embebedou a face e as lembranças do velho Severino aguardenteiro,
àquela tarde, no quintal de casa, sob céu azul, com neto ti-quin de gente
enganchado no colo.
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