No rastro de Borges e Cortázar
Lucius de Mello
Verão de 2007. Desci do táxi em Palermo. Fazia tanto calor em Buenos Aires que a
conclusão foi inevitável: era preciso passar pelo inferno para chegar ao Templo de
Borges. Atravessei a rua Anchorena na altura do número 1660 e fui direto tocar a
campainha da Fundação Internacional Jorge Luis Borges.
Sarah, uma senhora muito educada, veio receber-me. Disse que a casa estava fechada para
visitas, mas não resistiu ao meu pedido e acabou permitindo que eu conhecesse o imóvel
comprado por Maria Kodama, a viúva borgeseana, para abrigar a memória do escritor
argentino. Minha patroa está no Uruguai, volta só no fim de semana, comentou a
secretária. Logo ali atrás fazemos as jornadas literárias. Venha conhecer o auditório!
Os manuscritos? Ora, eles ainda não ficam aqui não. Não temos segurança suficiente
para guardá-los neste casarão, respondeu a funcionária. Quem sabe um dia trazemos todos
para cá. É o sonho da minha patroa. Já deste outro lado, veja aquela cadeira. É uma
obra de arte feita por uma talentosa artista plástica. Olhe bem de perto aquele pedaço
da peça. É possível ver o rosto de Borges no metal. Consegue vê-lo?
Era uma fotografia. Mas a arte conseguiu fazê-la ser muito mais que uma simples imagem
estática e morta. Lembrei-me dos enigmas e maldições dos espelhos e seus duplos que o
mestre evoca à Bioy Casares no conto Tlon, Uqbar, Orbis Tertius : declarara que os
espelhos e as cópulas são abomináveis porque multiplicam o número de homens.
Dentro do encosto da cadeira de madeira, o rosto de Borges se mexia. Como se quisesse
dizer alguma coisa ou apenas dirigir um olhar, um sorriso, uma cara-feia. Nem me preocupei
em desvendar a técnica usada pela artista, de tão envolvido que fiquei com a expressão
facial do escritor. Ela parecia observar todos que entravam naquela sala.
Como um fantasma, Borges estava ali, conosco, preso dentro da cadeira, atento a tudo que
conversávamos sobre ele. Nesta casa aqui ao lado, Borges viveu de 1938 a 1946, disse
Sarah. Saía pouco. A confeitaria Richmond, na rua Florida? Claro, como poderia me
esquecer. Ele e dona Maria Kodama iam muito lá. Gostavam bastante de tomar chá. Tinham
uma mesa exclusiva. Até hoje os garçons sempre avisam os clientes e turistas: os
senhores sentaram no lugar preferido de Borges, parabéns! Que pena, não temos nenhuma
lembrança que possa comprar aqui a não ser algumas edições das revistas Prisma e Proa.
Espere um instante que vou buscá-las lá em cima, explicou Sarah.
Ela subiu e eu fiquei com Borges na sala. Veio-me outro célebre conto naquele ambiente: A
casa de Asterión, quando ele diz : meditei sobre a casa. Todas as partes da casa
existem muitas vezes, qualquer lugar é outro lugar. A casa é do tamanho do mundo; ou
melhor é do mundo. Borges é para mim também um outro mundo ou sacerdote doutros
universos infindos... Olhei para o perfil refletido do escritor portenho e lhe agradeci
por tudo que tinha escrito, em especial, pelos momentos emocionantes que vivi e ainda vivo
ao reler o seu Livro de Areia. Nele, Borges ficcionaliza a idéia de que a literatura é
espaço heterogêneo da totalidade e um território onde se concretizam os desejos
insatisfeitos: o livro não escrito, o amor frustrado, a revelação da palavra secreta, a
construção do mundo futuro. O conto que fala de um livro que tem um número de páginas
infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma , a última. Não sei porque são numeradas
desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita
admitem qualquer número.
Essas palavras escritas por Borges voltaram a minha memória. A voz de Borges chegou
timidamente até mim. Declinava o verão, e compreendi que o livro era monstruoso.
De nada me serviu considerar que não menos monstruoso era eu, que o percebia com olhos e
o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena
que infamava e corrompia a realidade. Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um
livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse com fumaça o planeta. Lembrei haver
lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Antes de me aposentar,
trabalhava na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à direita do
vestíbulo uma escada curva se afunda no porão, onde estão os periódicos e os mapas.
Aproveitei um descuido dos funcionários para perder o Livro de Areia em uma das úmidas
prateleiras.
Fiquei ali parado com uma saudade infinita de mim mesmo. Saudade de areia. Saudade é de
areia. Deserto. Saara. Sarah voltou com dois exemplares das revistas Prima e Proa que eu
acabei comprando. Deixe seu email pediu a secretária de Maria Kodama. Quero lhe enviar a
programação das jornadas literárias. Nesses eventos sim, o espírito de Borges esta
presente, garantiu-me a simpática e culta anfitriã. O que ela nem podia imaginar é que
eu já vinha conversando com o espectro de Borges há alguns minutos e que enquanto Sarah
falava sobre os encontros que ocorriam na Fundação eu explicava ao imortal patrão dela
que dali ainda ia visitar Júlio Cortazar na confeitaria London City; que dali de Palermo
até o café onde nasceu Os Prêmios, na avenida de Maio esquina com a rua Peru, ainda
tinha que atravessar mais um grande pedaço de Malos Aires. Como não lembrar de Dante e
de Goethe quando o sol, implacável, brotava do subterrâneo e eu estava entre Borges e
Cortazar naquele dia de areia amarela. 40 graus.
Ao chegar à London City sentei-me ao lado da mesa onde Cortazar escreveu seu primeiro
romance em 1960. Ele e seu inseparável cigarro não saíam daqui, disse o garçom mais
velho da casa. Vinha diariamente escrever a novela Los Prêmios. Pode tirar um foto se
quiser. Fique a vontade. Sobre a mesa uma placa de metal avisando que o autor de O Jogo da
Amarelinha freqüentava o local, uma caderneta e uma caneta. Um altar literário protegido
por uma corda de veludo vermelha que separa a instalação cortaziana dos demais mortais.
Pedi um suco de laranja com ovos mexidos, um café e comecei a ler o panfleto editado em
inglês e espanhol que conta a história de como a London City virou musa inspiradora de
Cortazar. Nele destacam-se os trechos onde o escritor cita a confeitaria no romance Los
Prêmios. Como logo na abertura do primeiro capítulo: La marquesa salió a las
cinco pensó Carlos López Dónde diablos he leído eso? Era em
el London de Peru y Avenida; eran las cinco y diez. La Marquesa salió a las cindo?
.
Coincidência ou não, no dia seguinte comprei no sebo Cueva Libros na rua Paraná,
562 um exemplar muito bem conservado da segunda edição de Los Prêmios editado
pela Sudamericana em agosto de 1964. Sorte? Que nada. Acho que foi um presente que ganhei
por ter me deixado guiar, na segunda visita a Buenos Aires, pelos fantasmas mais ilustres
dessa cidade literária.
Bibliografia sugerida pelo autor:
Ficções - Jorge Luis Borges
Aleph - Jorge Luis Borges
O livro de Areia Jorge Luis Borges
Os Prêmios Júlio Cortazar
O jogo da Amarelinha Júlio Cortazar
E-Mail: luciusdemello@uol.com.br
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