Jean Arp e as estrelas artificiais
Juliana Szabluk
Meus trovões me despertaram do profundo sono como sempre.
Tateei o criado-mudo à esquerda até encontrar meus óculos. Ainda
sonolenta, névoa sobre a realidade, fui colocá-lo no rosto e entrei
em pânico – minha cabeça havia desaparecido. Corri ao espelho
rapidamente e, do reflexo sem reflexão, surgiu a comprovação: eu não
tinha mais uma cabeça. Meu corpo terminava no pescoço. Uma escultura
de Jean Arp numa situação surrealista, ainda era inexplicavelmente
detentora de todos os sentidos, contudo fisicamente mutilada.
—
A presença dele seria minha razão
agora...
—
senti. Perdida, sentei no sofá úmido
pela constante chuva que lavava as poucas almas da região. O cheiro
de mofo rescendia da vizinhança. Constantemente, passava a mão
curiosa pelo toco acima de meu peito. Apesar do desconforto, estava
calma, quase que feliz em liberdade inesperada.
As memórias que restavam em locais refutados de mim me alertavam
sobre as últimas discussões que tive com minha cabeça. Nos
intimidamos, confrontamos, levantamos hipóteses de abandono mútuo.
Estava claro que as ameaças tinham se concretizado. Onde poderia
achar meu crânio desertor? Refleti sobre os lugares que ela gostava
de ir e, sem hesitar, mais verdadeira e impulsiva do que achava ser
possível, fui atrás.
Cheguei ofegante no planetário da cidade. A escuridão da sala seria
um empecilho em minha jornada. Olhei por cima até perceber que uma
cabeça solitária não tem altura suficiente para ser vista por detrás
das poltronas. Vaguei fila por fila, em meio ao brilho das estrelas
artificiais de um céu que pertencia a todos. Pensei ter visto algo
semelhante a mim bem à frente, mas era apenas uma coruja relaxando
com seu amargo charuto. Me olhou, piou, não entendi, parti.
Prossegui meu caminho em direção ao prédio dele. A cabeça sempre foi
contra nosso amor, certamente a encontraria lá, o afrontando,
exigindo explicações ao inexplicável, palavras ao indizível e
imagens congeladas aos mais vivos sentimentos. Olhei para cima,
curvei meu corpo dolorido até visualizar o décimo andar: a luz da
sala estava acesa. Desviei das poças d’água e levantei com força a
grade do antigo elevador, sentindo cada vértebra se romper, causando
indescritível agonia. Subi.
O apartamento estava aberto... Estranhei. Atravessei a sala
iluminada e ouvi gritos afobados, urros selvagens vindos de uma
cabeça e de um homem que quase sempre negou qualquer outra parte de
seu corpo. Ironias fantásticas, ambos se voltaram para mim, me
analisaram de cima a baixo.
Fui esquecida velozmente em nome da discussão dos dois sobre o que
deveria ser feito em relação aos três. Não compreendi o porquê do
apego pela argumentação, mas me limitei a pegar o que era meu de
volta. Precisava da cabeça mais por medo do que poderia causar aos
outros do que por necessidade vital.
Fui até ela e me mordeu, a desgraçada. Larguei de uma só vez e foi
rolando pela cama até parar no travesseiro, muda como eu. Os
segundos de silêncio foram insuportáveis:
—
Agora sabe onde estive sempre que sumia
no meio da noite...
—
Disse ele com lágrimas nos olhos em doce
amargura.
Ignorei o pranto, voltei à cabeça e a ergui, tentando desviar das
mordidas, tapando-lhe a violenta boca. Parecia que queria me dizer
algo, então lhe dei a chance de finalmente se pronunciar:
—
A cabeça você encontrou, agora já
podemos ir em busca do coração.
(2006)
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