Ausência
José Roberto Hofling
Ontem à noite, melancólico e saudoso, enquanto escrevia uma longa carta de amor à minha
mulher viajante, olhei sem querer para a mão esquerda e comecei a achá-la enfadonha e
irrelevante.
Ali parada sobre a tábua da mesa, sem função nenhuma, era um apêndice besta, carecido
de utilidade, boba mesmo, comparada com a outra direita, esperta e próspera. Antes que
este fato tomasse por demais minha atenção e, considerando que sou homem prático e
decidido, resolvi então eliminá-la.
Sobre o cepo de rachar cavacos, depositei-a inerte, branca, unhas por fazer e, sacando da
bainha o facão, tchooooomp.
Fora um golpe de mestre, digno mesmo da minha proverbial habilidade. Ao vê-la ali
prostrada e sozinha, quase senti pena, mas nem um pingo de arrependimento. Afinal, exigia
trabalho extra e a maior parte do tempo vivia encolhida e suada dentro do bolso, sempre a
imaginar coisas.
Porém, previdente e parcimonioso que sou, a exemplo de meu avô marceneiro, diligente
catador e colecionador de objetos inúteis, resolvi mantê-la guardada. Quem sabe um dia,
um penduricalho de colo, um enfeite de mesa, peso de papéis, sei lá, farei uma bobagem
qualquer. Bem feito! Não tangia serrote, não mexia panela, não tirava sapato, nem
coçava, nem nada. Bem feito mesmo!
Hoje estou feliz, mais leve, menos preocupado com coisas inúteis.
Além disso, e mais por isso talvez, acabo de receber telegrama da minha mulher que
inesperadamente retorna de sua longa viagem!
Apresso-me, calço-me de sapato novo e dirijo rápido como o vento, rumo à rodoviária.
Olhem só, lá está ela, linda como sempre com seu indefectível lenço de seda , dentes
alvos à mostra, sorrindo aquele mesmo e delicioso sorriso, um pouco mais gorda talvez.
Lá vem ela! Mala abandonada no chão, beija em minha boca, gruda em meu pescoço.
Afastando-se um pouco, mãos sobre meus ombros, olha-me de alto a baixo e de repente
empalidece. Uma sombra gigantesca ataca seu rosto e murcha sua boca. Sua ampla testa se
enruga, os braços penduram-se no corpo voluptuoso.
A volta para casa é longa e silenciosa. Responde monossilabicamente à minha ansiedade de
conhecer suas andanças, olha-me apenas de soslaio. A chegada em casa é pior ainda. Aos
cães, há tempos sentindo sua falta, dirige apenas um afago breve e desprovido de
entusiasmo, para em seguida trancar-se no quarto.
Que diabos é isso agora? Não posso compreender. É certo que estou um pouco mais velho,
a barba longa demais, mas não considero motivos suficientes para tanto e tão prolongado
constrangimento. Será que é o que eu estou pensando? Será que ela teria notado, em sua
perspicácia, a falta daquele... Não é possível! Não é possível! Será?
Bem, pelo sim e pelo não, não me custará nada. Posso aproveitar seu banho e arrumação
das roupas, para recolocar aquele traste de mão em sua posição original. Sim é isso
mesmo! Uns pontos aqui, outro remendo ali, depressa! Pronto! Mais um serviço bem
realizado. Na verdade uma obra de arte.
Entro sem ruídos. Na obscuridade vespertina do quarto ela vira-se para mim e, buscando
ansiosamente com o olhar a mão reimplantada, fixa demoradamente seu olhar na aliança de
ouro. Seu rosto resplandece como nunca visto antes. Então, esticando os braços abertos
em minha direção e sorrindo novamente, cobre-me generosamente com sua magnífica e
desejada nudez.
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