Joaninha fazedora de jarro
Jaderson Bellan
A vizinhada do bairro Olaria conhecia a senhora grisalha por Dona Joaninha. Até aí, nada
demais: sua graça era Joana mesmo. O que mais encasquetava era a semelhança dela com o
insetinho coleóptero: muito dócil, terna. Caminhava curvadinha e ostentava uma ampla
coleção de casacos de bolinha.
Um tanto monossilábica, é verdade. Não era lá muito afeita às palavras. Joaninha
acreditava em suas mãos, apenas. Por isso era das mais respeitadas oleiras das
redondezas: seus jarros e moringas encantavam legiões de turistas que vinham de longe,
não apenas pelas formas suaves e abauladas de encher os olhos, mas também pelos desenhos
de valor artístico inestimável. Quando os filhos questionavam-na porque era tão calada,
ela respondia:
Boca mente o tempo todo. Mão não. Quando acarinha, é que ama; se bate tá com
raiva.
Jamais dizia "eu te amo". Só chegava com a mão gordinha de dedos grossos, que
se embrenhava pela cabeleira desalinhada das cinco crianças, e começava um feitiço de
cafuné. Tão feitiçoso que logo a meninada toda se punha a dormir.
Bem de manhãzinha, quando o céu era só clarão mas o sol ainda se encorujava pra baixo
da terra, Joaninha, já de pé, passava o café. Mais preto que noite. Fortíssimo. Pra
agüentar o mais um dia de trabalho no torno. Sobre a mesa de toalha desbotada de muitos
quadradinhos, Joaninha colocava, além das cinco xícaras das crianças, uma outra, que
lá ficava até o anoitecer.
Pro pai?
Perguntava a terceira menina, que já amocinhava e se metia a entender das coisas,
empinando os peitinhos mal nascidos.
Era pra Jeremias, marido ido. Já havia quase quatro anos. O homem, logo depois de
emprenhar Joaninha pela quinta vez, fugira com Analice, a filha da vizinha. Um espanto de
moça, de tanta boniteza. Tez alva, olhos muito negros, um pouco desviados. Discretamente
estrábica. Nunca se sabia ao certo pra onde a mocinha estava olhando.
No dia da fuga, depois de girar o torno o dia inteiro, Joaninha chegara em casa exausta.
Procurava Jeremias para lhe mostrar o dinheiro do dia, com a venda dos jarros. Chamava.
Chamava. Nada do homem. Quando pegara o pote da economia de dez anos de trabalho, o susto!
Susto brusco de boi preto que enfia a cara brava pra dentro da janela. O pote vazio que
era só ar. Na manhã seguinte chegara a notícia: Jeremias havia comprado um jegue na
cidade, colocara Licinha no lombo e saíra galopando pela estradica de terra que cruzava
horizontes, sem destino.
Passados quatro anos, estava Joaninha fincada firme na cozinha. Café feitinho. Dia
diferente dos outros: decidiu deixar as crianças dormindo mais um bocadinho, antes de
despertá-las pra labuta. De repente, uma pontada violenta no peito. Como das outras
vezes, pensou "hoje não". Mas dessa vez a dor vinha metida a besta. Teimosa.
Fisgou de novo, ainda mais forte, no coraçãozinho cansado. E ela, insistente:
Já disse! Hoje não!
Apressou-se. Tinha de entregar uma encomenda de quinze jarros para uns turistas alemães.
Era dinheiro que chegava pro pão da prole por uns dias. Saiu de casa com a bacia e
começou a descer o barranco que dava no ribeirão. Precisaria de muito barro. Novas
fisgadas e Joaninha caiu de joelhos, prostrada no lamaçal. Enfiou os dedos gordinhos na
lama. Ah! Era deliciosa a sensação do barro fresquinho e cheiroso penetrando atrás das
unhas.
As vistas embaçavam. Na outra margem do ribeirão, avistou um homem esguio. Por um
instante, uma certeza esfumaçada invadiu Joaninha. Jeremias! Tinha de ser Jeremias! Logo,
a miragem já sorria o sorriso protetor de Jeremias. Ah, Jeremias! E sumiu, feito corisco!
Outra pontada. E outra. Joaninha subia o barranco com a bacia cheinha de barro,
resfolegando. Em vão resistia, repetindo com insistência de herói "hoje
não", "hoje não".
Já no terreiro dos tornos, sentou o corpo cansado no primeiro torno. Um punhado de barro
começava a girar. Aos poucos a massa amorfa ganhava personalidade, mais e mais imponente.
As mãozinhas hábeis forjavam o mais belo de todos os jarros. Uma última fisgada.
Fulminante. O torno parando, parando. O vaso se entortando lento, molenga. O pescoço já
não suportava o peso. A cara redondinha de lua despencando no barro. O barro invadindo a
boca entreaberta. Ainda procurou força pra cuspir. Inútil.
Joaninha virou ligeiramente a cabeça. Diante dela, o mais novinho, garnisezinho, miudinho
de dar dó, encarando-a com olhos secos, agrestes. Peladinho, ranhento, barrigão d'água.
Deformado pelo calor que subia da terra, era mais fantasma que gente. Ficaram assim, mãe
e filho, se espiando por instantes. E, assim, Joaninha fechou os olhos.
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