Tempo de ler Clarice
Hilda Simões Lopes
Perceba os paradoxos e pense em como nunca o homem foi tão poderoso para o bem e para o
mal. Podemos modificar espécies, viajar no sistema solar e destruir o planeta. Montamos
uma rede de comunicação universal e instantânea, vemos e ouvimos tudo, falamos quando e
com quem queremos. E vivemos imersos em corrupção e violência, banalizamos a vida e a
morte e, ruminando pânico, erguemos grades, trancamos portas e nos encarceramos. É o
tempo da contradição onde se aprofundam abismos, medos e inseguranças. O homem está
abandonado, perdeu o contato com a terra, com o céu. Ele não vive mais, ele existe.
Clarice Lispector disse assim.
Nessa época de homens poderosos em todos os sentidos, ler Clarice, a hermética, a
intimista, a escritora que se afasta da sociedade em crise para a crise do indivíduo, a
escritora do torvelinho das almas, cada vez mais parece água fresca em dia de quarenta
graus à sombra.
Clarice Lispector também fala em assassinato mais profundo: aquele que é um modo de
relação..... um modo de nos vermos e nos sermos e nos termos, assassinato onde não há
vítima nem algoz, mas uma ligação de ferocidade mútua.
Clarice não enxergava a desumanidade do social e sim a das almas, punha a mão na fome de
integridade e não na de comida, gritava pela ausência de ser e não pela de saúde e
saneamento. Queria mexer na seiva e não nos galhos da árvore. Coisa difícil, afinal a
fome é imensa e tem muitas faces, e metaforicamente Clarice explica: a
pessoa come a outra de fome, mas eu me alimentei de minha própria placenta. E me
pergunto se ler sua literatura não é isso mesmo, comer placenta, engolir fermento de
vida, deixar as bordas e afundar no miolo.
O interessante é que essa fome por uma humanidade centrada no ser, presente na obra de
Clarice Lispector, vive no imaginário dos africanos e faz parte de seu vocabulário. Eles
diriam que Clarice Lispector anseia um mundo de ubuntu. Tal expressão, usada
hoje para sistemas operacionais simples e gratuitos, vem da África onde é bonita em
significado como em seu uso virtual. Tem a ver com nossa essência, algo como sou o
que sou devido ao que todos somos, e para os africanos, quanto mais nos apropriamos
dessa idéia mais humanos ficamos. Tem muito ubuntu quem não se intimida com
o sucesso, a capacidade ou a beleza dos outros porque sabe que, igual ao outro, é parte
de um todo, ou quem não rouba do outro porque sabe como atingirá o todo do qual faz
parte. Este sentimento nutriu o ontem eu tive um sonho, todos éramos cidadãos do
mesmo mundo de Martin Luther King, o Imagine de John Lennon e vários
discursos de Bill Clinton.
Ignoro se Clarice conhecia a palavra africana, mas a idéia se derrama de sua literatura: Não
me mostre o que esperam de mim porque vou seguir meu coração, não me façam ser o que
não sou, não me convidem a ser igual porque sinceramente sou diferente........ Não
copie uma pessoa ideal, copie a você mesma........ O que é verdadeiramente imoral é ter
desistido de si mesmo.
Claro, Clarice, claríssimo, ser o que se é porque cada um é um e temos de nos somar e
não nos copiar.
Os todos poderosos homens de hoje, para o bem e para o mal, como diz Clarice Lispector,
não vivem, existem. Vivem apenas um carnaval de vaidades, teres e poderes, usando as
fímbrias de suas existências cambaleantes, controladas por comprimidos e sedentas por
paz e alegria genuína.
Imagine todas as pessoas/ vivendo pelo hoje / nada porque matar ou morrer / nenhuma
necessidade de ganância ou fome / imagine todas as pessoas / compartilhando o mundo todo.
John Lennon disse assim. Bem igual a Clarice.
Ele usou a música, ela as metáforas. Era uma humanidade deslumbrada pelo poder
tecnológico alcançado, mas eles queriam alcançar a mudança das almas. E alma, sabe? é
um negócio imenso. Clarice usou as metáforas porque as palavras não chegavam lá, e
acharam difícil de entender. Passou o tempo e o deslumbramento implodiu, todo mundo viu,
os poderes avançaram, para o bem e para o mal. Por dentro, fome por outro tempo. Tempo de
ler Clarice.
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