Frente... e verso
Gilberto Borges da Silveira
Frente ...
Enroscou um fiapo do cadarço nas frestas do muro tosco, perdendo o fôlego da subida
louca. A intenção era fugir da sanha das botinas brutas, que gritavam em seu encalço.
A parada rápida se livrou do tênis de marca, adquirido sem consentimento de um
menino do outro lado, trouxe junto um alerta inútil: Quantos seriam seus algozes, de quê
mais estaria fugindo?
Sempre tinha esses pensamentos vãos; seu irmão já avisara que era coisa de demente:
Quem pensa muito não esquenta a vida. Como se fosse possível dominar o que se vai
na cabeça, assim, como um controle remoto de televisão. Pensar não é querer. A
autoflagelação do escárnio próprio não ensina a vontade de agir, do impulso feliz na
inconseqüência de quem vive pendurado num fiapo de cadarço.
Saltou no espaço, caiu na linha do trem sem apito, que trafega trágico numa carcaça
podre. Era só isso que passava pela sua vida; um vagão que não levava à estação
alguma, uma máquina sem motorista na falta de compromisso de chegar.
Sentiu a sola do pé nas pedras soltas, chutou sem jeito um prego enferrujado, vendo
escorrer o sangue conhecido. A dor lembrou as tragédias antigas, sem data e sem registro,
simples acontecimentos numa vida vadia. Largou a arma no meio dos trilhos, chorou o dedo
machucado e buscou o caminho daquelas linhas paralelas.
Sabia que, para o tiro que ouvira, era ele o alvo, e correu aguardando o baque. Que veio
surdo, junto com a falta de ar que sentiu no peito. Quis gritar, mas o som ficou na
garganta, estático no tempo que parou, enquanto ele sentia esquentar a bala nas costas.
Pensou flutuar por um instante, livre do corpo atingido, alma lançada no vazio. Viu a
queda acontecer como num filme e não sentiu dor quando encontrou o chão, o rosto de boca
aberta.
Com saudades da mãe, foi nela que pensou por último. Só queria dizer ao irmão que não
era louco, que pensar não era culpa. Só vontade de não sentir medo, ler um livro, ter
um sonho e imaginar que a vida seria longa e feliz.
... e verso
Quão dolorido é esperar a lágrima se formar? O tempo de ouvir bater o coração,
descompassado; intensamente sentir a contração da dor se formando. A gota salgada parece
brotar no canto dos olhos ardidos, temendo escorrer pelo rosto vincado dos anos bandidos.
Um segundo, uma eternidade, a lágrima pronta, esperando vencer a inércia para queimar os
sulcos da pele, escorrendo rosto abaixo.
O soluço trai a frieza covarde do tiro no escuro. Apertar o gatilho sem mira, sem raiva,
sem destino. Por ofício, rotina repetida dia a dia. Gesto comum, daqueles dos quais se
ufana no bar: bandido é bandido. O remorso era novo, desconhecido, mas parecia uma
corrente represada que agora liberava seu núcleo nervoso pondo tudo a perder.
Sabia que chorar seria sua desgraça; entretanto, a fortaleza que segurava a culpa,
entupida de tanta violência barata, ameaçava romper, liberando anos e anos de bons
serviços.
Ficou olhando o corpo de bruços, no meio dos trilhos, a boca aberta engolindo as pedras
da última refeição, com a certeza que, se fosse permitido, o alvo daquela arma largada
no chão seria ele. Era uma guerra, com os códigos sujos da sobrevivência necessária.
A lágrima sufocada não era por aquele tiro, não por aquele corpo que espalhava o sangue
na camisa barata, inundando as costas de um delinqüente comum. A dor que sentia, que
aumentava, era pela vida medonha, escolha nenhuma, destino percorrido lentamente pelos
desgraçados que estavam em qualquer lado daquela guerra estúpida.
Levado por um gesto insano, abraçou aquele corpo desconhecido, soltando o choro contido,
liberando a batida do coração para soluçar por ele próprio e pelo sangue derramado.
Expiou a culpa do mundo, lembrando do filho que estava em casa, esperando o salário
daquela profissão possível, para poder comprar um tênis novo.
E-mail: gbsilveira@gmail.com
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