Quantas vezes era uma vez
Fernanda Coutinho
É, desde o começo elas existiam. As pessoas.
No princípio, finda a jornada de labuta, costumavam ir em busca de calor e logo uma
ciranda nascia em tomo às fogueiras. Frias eram as noites e elas, as pessoas, querendo se
aquecer, ali também aqueciam seus sonhos, com o fascínio das histórias que vinham da
voz pausada, porque sábia, de um homem de cabelos antigos e fundas rugas, capaz,
entretanto, de iluminar ainda mais o ambiente com o fogo de sua palavra e o encanto de seu
olhar. E se acontecia de ele sentir junto de si um hálito frio, molhado de noite, maior
era o ardor com que envolvia seu conto, pois era assim que gostaria de ouvi-lo de novo,
lá no além, recontado pelos que só partiriam algum tempo depois.
Isso foi há muitos anos. Foi outrora.
Até que um dia chegou o medo. Porque alguém se flagrara pensando alto: seria a perda do
tesouro! Isso se, como por encantamento, as pessoas desaprendessem a arte de narrar. De
repente, todos os mitos dos povos poderiam se apagar num lapso de memória dos guardadores
das relíquias. Em coro, as pessoas ecoaram um único desgosto: que mundo sensaborão
seria aquele sem o fermento do muito imaginar!
E eis que, num abre-te sésamo, descobriu-se existir lá num reino de longe, junto aos
egípcios, uma planta cujas folhas, colocadas umas vizinhas às outras e coladas, serviam
exatamente para o que se queria: juntar os pedaços das histórias. Assim todos os que
lessem o que nelas estava gravado murmuraram sem susto: e depois? Da folha seguinte
saltaria a resposta consoladora.
E o passar das horas se repetia incessante. Ao observar o trabalho dos pastores, que
curtiam a pele de ovelhas e cabras, algumas pessoas perceberam a mão da natureza, mãe
generosa, imolando alguns de seus filhos, para que outros pudessem subsistir alimentados
pelas fábulas inscritas no pergaminho. E era longo o percurso de muito copiar: costas
curvadas, dedos enrijecidos, fatigado labor.
A roda da vida engoliu o tempo. Agora, tipos metálicos repetiam nos papéis os caracteres
contadores de história, tantas vezes quantas, sujos de tinta, percorressem as folhas
brancas. Ainda mais tarde, os olhos buliçosos das crianças arrancariam das páginas o
colorido alegre das figuras, que falava de histórias tão bonitas... Ah! e desde então
elas vinham morar dentro de seus coraçõezinhos alvoroçados!
E a máquina prodigiosa foi capaz também de encher de suspiros tardes e noites de muita
moça em botão. Era só passar a página dos livros e, como num espelho, ver
projetarem-se os seus sonhos e lá, invariavelmente, estava ele: o jovem capaz de lhe
oferecer o mundo com o perfume da ilusão. Nem sempre era tudo tão ameno, porém. Por
vezes era como se os tipos de metal recebessem vergastadas: das folhas de papel, então,
emergia toda a crueldade de uma realidade sombria. E era assim que, descendentes muito
longínquos daqueles que em volta da fogueira tinham aprendido o que era contar,
partilhavam, tempos e tempos depois, o prazer e as dores das pessoas que brotavam das
páginas dos livros.
Até que um dia descobriu-se uma maneira de todos lerem ao mesmo tempo, se quisessem. E
criou-se uma caixa (diziam que era eletrônica!) cheia de histórias que, a cada dia, mais
se enchia de outras, pois, não se duvide, o tecido da noite faz do mundo um continuo
renovar-se com o nascimento de novos contadores. Muitas pessoas, entretanto, achavam
estranho o objeto, por isso surgiram escuros vaticínios: agora, sim, para sempre finda a
sedução de antes! O que virá depois? era a pergunta que faziam aos sábios.
Esses discordavam de tão sombrios presságios, entreolhando-se, serenos e de alma branda.
Sabiam que a saga de encantamento das gentes parecia nascida para nunca terminar. Tantas
vezes era uma vez.
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