Luzes que se apagam...
Eduardo Calazans
Quando o pai reuniu a família e anunciou em tom solene: Vamos comprar uma
televisão!; foi uma explosão de alegria em todo o casarão, um dia de festa. A
mãe aplaudia, os filhos trocavam abraços e vivas. O pai não cabia em si de tanto
contentamento. Somente Elvis, o filho do meio, como sempre com um pé atrás, não caiu na
fuzarca. Quase todos felizes, de fato, com a possibilidade de ver e ter o mundo dentro de
casa. Um cinema dentro de casa!, enfatizava o pai com orgulho. E depois, como
um juiz perante um tribunal, fizera com que todos os jovens jurassem e prometessem ficar
em casa. Não seria preciso mais sair à noite, teriam tudo, toda a diversão do mundo no
aconchego do lar. Juraram de pés juntos que, se realmente, de fato, ele comprasse o
televisor, não mais sairiam de casa.
Palavra de honra! Pudessem aguardar!
Foram dias e dias de ansiedade e espera, ninguém arredou o pé na porta da rua, até
mesmo um cineminha do qual tanto gostavam, ficou para depois.
Dito e feito. Quando o caminhão de entrega despontou na esquina da Ladeira do Boqueirão,
a família e os vizinhos não conseguiram conter tamanha euforia e algazarra, parecia um
bloco de carnaval em cortejo.
Nos primeiros dias foi só deslumbramento, meio chuviscado, preto e branco, mas
espetacular! Mexe daqui, mexe dali, mexe dacolá. Botão pra isso, botão
praquilo, botão praquiloutro. Tudo era novidade. Capinha
para a bichinha ficar bem conservada!, dizia a mãe com zelo. Nesse tempo os
aparelhos duravam para sempre, uma eternidade. Eletrodoméstico era tratado com carinho e
deferência.
Todos queriam ligar. Ninguém podia ligar. Somente ele, o patriarca, tinha ciência para
controlar tamanha invenção. Se todos mexessem, o bicho podia estourar, dar
caroara. Não, melhor não mexer! Deixassem ele! Era um homem experiente e no
mais: Petroleiro. Era o único que poderia pagar o conserto. Não, Ave Maria! Nem pensar
em quebrar. Era novinha, estalando. Não, não, duraria uma vida. Tudo naquele casarão
era perenal, durava uma vida: o rádio e a radiola eram da Segunda Guerra Mundial,
Da Segunda Guerra!, repetia o velho com bazófia. Os móveis, os pratos,
talheres, era tudo do Tempo do Onça.
Todavia, parece que Há males que vêm para o bem, como diria o pai sem muita
convicção. Uma coisa muito boa aconteceu: livraram-se da Hora da Ave, Maria
pelo rádio; no crepúsculo o instante da ave-maria era de uma tristeza sem par; primeiro
entrava o vozeirão de Augusto Calheiros cantando; Cai a tarde/ serena/
tristonha... e depois emendava com a Ave, Maria de Gounod... Se fosse no inverno,
então, Afe Maria!. Era de uma melancolia que penetrava lá no fundo
dalma. Ao menos desse incômodo a televisão os livrara.
Permaneciam atentos e ávidos frente ao aparelho, muito mais pela engenhoca do que por sua
precária programação. O aparelho suscitava em todos a curiosidade e deflagrava
calorosas discussões sobre a evolução da humanidade. O irmão mais novo perguntando ao
pai, qual das invenções do homem ele achava a mais fabulosa e o pai que até então
pensara ser o rádio a maior de todas, ficara titubeante - quando tinha que emitir
opinião sobre qualquer novidade parecia pouco à vontade. O irmão mais velho achava o
avião a maior de todas as invenções: Como era que um bicho tão pesado podia voar
sem cair?, perguntava abismado. A mãe, antes, impressionada com o ventilador e o
liquidificador, agora, estava maravilhada com a televisão, repetia aérea e estupefata:
um mundo dentro de casa!. O tio, irmão da mãe, acreditava ser a maior de
todas as invenções a escrita, causando frouxos de risos. E com isso divagavam, cada um
defendendo o invento preferido.
Entretanto, em meio à tamanha discussão em torno do grande marco para a humanidade como
queriam crer, Elvis, por sua vez, parecia reticente, misterioso. Continuava fascinado pelo
cinema. Acreditava que a televisão com aquela telinha miúda, dificilmente, iria fazer
frente a uma tela Cinemascope e Tecnicolor.
E naquele instante pensava nas coisas boas da Bahia: tomar Milk-Shake com
Adão e Eva no paraíso na Sorveteria A Cubana; descer o Elevador
Lacerda e andar de Ônibus Elétrico na Cidade Baixa; dar caída no cais de dez metros na
feira de Água de Meninos e voltar correndo para não perder a matinê de
domingo no cinema do bairro.
Lembrara do último encontro com Mêgêmêfã, o projetista do Cine Santo
Antônio - a melhor sala de projeção da cidade!-, onde, ele e toda a turma assistiam a
excelentes filmes europeus, à fina flor do cinema: Fellini, Buñuel, Visconti, Charles
Chaplin, Hitchcock, assim como, aos filmes de Brigitte Bardot; às comédias e aos
dramalhões mexicanos; às chanchadas da Atlântida, aos primeiros filmes de Glauber Rocha
e do Cinema Novo; aos seriados e alguns filmes americanos; aos musicais da
Metro, ao Gordo e o Magro e a outros tantos faroestes. Hollywood
ainda não havia dominado de todo o mercado cinematográfico brasileiro.
Tinham entrada livre no cinema, uma vez que, eram amigos do projetista Vilmar Mêgêmêfã
- tinha esse apelido porque era fã dos Musicais da MGM.
Mêgêmêfã era um artista nato, sabia os filmes de cor e salteado, todas as falas dos
artistas, imitava todas as vozes e trejeitos: cantava como Elvis, o xará; andava como
Cantinflas e Carlitos; sabia diálogos e cenas inteiras; contava e recriava os filmes com
uma riqueza de detalhes que nem mesmo os roteiristas mais tarimbados poderiam imaginar.
Ao findar as sessões, todos se reuniam à porta do cinema, e aí então, começava o
verdadeiro show, toda a rapaziada ficava fascinada com as performances artísticas de
Mêgêmêfã: imitava com perfeição as vozes do noticiário Atualidades
Francesas; os rugidos do leão da Metro; os duelos dos faroestes,
falando inglês com comicidade, e ainda de quebra; os volteios de Geny Kelly e
Donald OConnor em Cantando na chuva.
Mêgêmêfã era uma das grandes alegrias da cidade, sujeito altruísta, sempre
presenteava a todos com pedaços de fitas cinematográficas, os quais durante a semana
eles projetavam nas paredes das casas, usando somente uma caixa de sapatos, uma lâmpada e
muita criatividade.
Aos domingos, na cidade do Salvador, ainda provinciana, sem grandes atrativos, os jovens o
tinham como a grande atração, o espetáculo. Mostrava-lhes um mundo de sonhos e
fantasias. Passavam horas a fio apreciando o talento e a espontaneidade do artista. Era
muito melhor do que muitas fitas americanas.
E agora, sem quê nem pra quê, toda aquela alegria estava ameaçada...
E foi numa dessas tardes, quando, para desespero de toda a turma, haviam encontrado
Mêgêmêfã triste e desolado, na saída do cinema. Temia ele que devido à chegada da
televisão, as pessoas deixassem de ir ao cinema, o que para ele seria uma perda
irreparável, perderia não só o emprego, como também todo um mundo de sonho que havia
construído em volta. O cinema era a sua vida. Sua vida estava em jogo. Todos os sonhos
jogados pela janela. Somente o cinema, o circo e a literatura tinham a capacidade de nos
fazer sonhar, lamentava resignado Mêgêmêfã.
Odiaram a televisão naquele dia e, por um bom tempo, torceram para que a mesma não desse
certo, muito embora se sentissem angustiados, pois, torciam contra o novo xodó da
família brasileira.
Contudo, apesar da angustia daquele dia e da solidariedade dos jovens ao verdadeiro
artista, no casarão, prosseguiram as animadas conversas em torno do aparelho, em função
do seu mau funcionamento e da programação pífia da televisão - desenhos animados,
seriados, algumas propagandas, tudo ainda cinza, tudo ainda em videoteipe -, primária e
rudimentar.
Somente quando começou a passar a novela O Direito de Nascer, as acaloradas
discussões foram rareando e os pensamentos fugindo, a mãe só sabia dizer: É
igualzinho à vida real!... E com isso, o silêncio e o tédio tomaram conta da
sala, as pessoas e os diálogos no casarão nunca mais foram os mesmos...
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