Tão miúda!
Cármen Rocha
Sonsa! a mãe ouve ao longe... Falas. Risos. Estremece...
A criança nasceu assim, de repente. Sete meses. Aquele corpinho... Tão frágil... Tão
miúda! Difícil de pegar, manusear... A respiração difícil...
Custoso mesmo foi o banho!
O irmãozinho fez-se nenê novamente. Fazia manha. A irmã enciumada trouxe todas as
bonequinhas de seus bercinhos. Todas pequeninas como a recém-nascida minúscula.
Colocou-as uma a uma em cada gaveta da delicada camiseira, com singelo desenho floral
cor-de-rosa, do quarto da nenê pequenina. Três em cada. No meio da roupa. Abre e fecha.
Troca a fraldinha... Dobra o xale. Cobre e cobre e cobre... Recusa-se a deixar o quarto.
Grudada.
Beijinhos no caçula e consolo. As primas saem.
Cabelos pretos roçando a face. A empregada nova zanzando de lá para cá. Cansada. Suava.
Arruma, arruma, serve, carrega...resmunga...
Chega a tia.
Está bem, lavar a pequerrucha. Tão frágil! Olha a pequenina corpinho
miúdo! Sem forças. E a roupinha? Traga a banheirinha, criatura! Traga o que o doutor
recomendou! A espuminha suave. Pegue a água... Coloque tudo dentro. Está fervendo!
falou alto. Esfrie, criatura! Espere... não assim... Lígia traga a roupinha!
O velho, velho! Encurvado. Quieto. Imóvel. Sentado. Pernas frouxamente cruzadas.
Estranho. Assistia a tudo do corredor, pelo pequeno vão da porta do quarto. Fechava um
olho para ver melhor. O outro lacrimejava. Logo passava o lenço e espiava rapidamente.
Não queria perder nada, nada...
Cadê a toalha? Corra, sua ... a moça enervada.
A cabeça dói. E pesa. A mãe pára atordoada. Apóia-se na madeira da porta. Fraca,
fraca. Aperta com força de encontro ao peito a criaturinha suada e fétida. O xale
resvala. Sai do quarto. Caminha. Respira fundo... respira... recostada à porta aberta da
varanda. O vento... Caminha.
Não! Não! Na varanda do apartamento, não! Aqui só as plantas...
A caixa de cimento não é para banheira, é para plantas. É perigosa, é funda
explica. Na área faz frio. Venta. O apartamento é alto. Olhe lá embaixo... A rua lá
embaixo. Tudo pequeno... Pode cair Arrepio! A caixa quadrangular de cimento
está muito na beirada. A área é fria! toma a criança. Afasta-se rapidamente.
Mas... mas... - respira. A mãe faz que não com a cabeça. Estica os braços em
desespero. Confusa! Confusa!
Seguem para o quarto.
A mãe atrás da criança, trôpega.
Risadas. Pessoas entram e saem. Cumprimentos. Beijos.
Chega a visita. É amiga. Quer ver a pequerrucha. Onde está a criança?
No corredor, o movimento. Passa... Volta... Torna a passar...
O velho semi-ergue o corpo, apoiado em uma perna só. A outra está dobrada sob ele e
serve para torná-lo mais alto. Espia pelo vão da porta. Enxuga o olho aguado. Firma a
vista.
Onde está a menina? A recém-nascida minúscula? Tão fraquinha... Onde está?
ouve-se a pergunta.
Confusão. Pessoas para lá e para cá. O apartamento cheio. As risadas dos homens
comemoram. As mulheres riem, trocam cuidados, receitas...
A irmãzinha abre e fecha as gavetas... Não perde nada. Tantas bonecas para cuidar... A
loirinha... a moreninha... o bebê... Brinca. Olha. Não tira os olhos dos acontecimentos.
Reservada. Cobre e cobre. Várias fraldas. Só mais um cobertorzinho. Está tão frio!
Entra a priminha ciumenta, de costas semi-fecha a primeira gaveta suavemente, e a
segunda, e a ...
Pessoas no corredor continuam a passar, a conversar, a rir...
O cheiro bom do café.
A cunhada passa com a bandeja.
A tia aflita exige a criança. A prima se aborrece. Larga a xícara.
Não, não tomou banho...
Ainda?
A água esfriou?
Um pouquinho.
A mão direita, trêmula, procura no fundo. A água delicada, espumante e cremosa
como o doutor mandara da pequenina banheira não escondia o corpinho miúdo.
Tragam a filhinha... vocês...
A mãe atordoada, atordoada. Escora-se na porta. Transpira.
A garota da vizinha chegou, quer brincar com as bonecas. A irmã deixa. Só as de cima.
Fica de olho.
Espia. Curiosa. Pega. Abre e fecha com força a gaveta... Pam! Barulho.
O velho mudo se remexe na cadeira.
A mãe tampa os ouvidos. Enlouquecida. Nervosa. Empurra forte a vizinha porta afora e
fecha o quarto. Sem ar, arfando... O suor molha sua testa.
A visita acode. Desencosta a porta. Fala suavemente:
Não faça isso... É criança. Calma, querida!
Mas... mas... balbucia a mãe, os olhos escurecendo. Encolhe-se. Todos riem.
Estremece.
O velho agoniado encolhe a perna para dar passagem. Fica quase em pé. Atento.
Todos procuram.
O banho esfriou... resmunga a empregada.
A irmãzinha fica olhando com um sorriso frouxo nos lábios, disfarçando a boca com a
mão direita. Sua mão esquerda, por trás, empurra e vai fechando suavemente a gaveta de
baixo, até o fim... Discretamente...
O velho inclina-se e torna a espiar. O olho lacrimeja. Passa o lenço. Fica inquieto.
A nenê! Não está em lugar nenhum! grita a tia.
A mãe escorrega lentamente até o chão. Amontoa.
Onde está o corpinho miúdo? alguém balbucia.
E-Mail: carmenrochacontos@uol.com.br
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