Beco sem saída
Adérito Mazive
A jornada de Sónia havia, finalmente, chegado ao fim. Valera-lhe o
mesmo de sempre, mas não devia queixar-se, sabia de cor o fim do seu
trabalho: manter-se viva e palidar as incertezas tão certas que a
acompanhavam ao longo da sua biografia. Então meteu-se no autocarro,
e pôs-se logo a conversar qualquer coisa com uma mulher que se
achava ao seu lado (provavelmente colega sua). A sua interlocutora
colaborou vivamente. Talvez por medo daquela estrada que dava ao
inferno: quanto mais se aproximavam do destino, menos luz havia e
menos gente as acompanhava.
Mas chegaram. E Sónia pôde fugir das meditações em torno de seu
ofício e de sua existência que fazia sempre que se achava sozinha e
quando sentia que seus companheiros de viagem tinham a mesma cara
que a sua, a de tristeza. “O convívio pode não resolver os
problemas, mas os adia. E se calhar quando os reencontrarmos
estaremos menos frágeis,” pensava.
E então estava na hora de ir para cama. Já não era longe. Andou uns
poucos passos e deteve-se num portão. Os seus 1.60 de altura não
bastavam para ver, por cima deste, o que acontecia no interior da
casa. Mas pôde ver lâmpadas acesas e ouvir vozes de pessoas a
conversar. Com destreza de ladrões experientes abriu o portão e
dirigiu-se ao cubículo que estava no fundo do quintal da casa. Aqui
é que era sua casa. Tirou, do ombro, a pesada bolsa e sentou-se no
degrau da porta para apanhar um ar. Mas este estava frio, fustigando
suas pernas desnudas e seus bracinhos. Levantou-se, às pressas, para
reencontrar o conforto do seu lar (abafado por aquelas alturas) ,
mas a porta abriu-se com facilidade e rapidez espantosas, sem
precisar da chave. Assustou-se. E ficou largos segundos com medo de
acender a lâmpada. Que seria?
Finalmente colocou a mão o interruptor. Não por coragem: não sentiu
a cama que ficava mesmo na entrada. Acendeu aquela lâmpada que mais
assombrava que iluminava para confirmar o facto. Não ousou emitir um
som qualquer que exprimisse seu desespero. Quem é que o ouviria?
Chorou parta si mesma tudo que pode, em todas posições, até ver, num
dos cantos do cubículo vazio, um papel sujo e amarfanhado, que não
teria o convidado para seu pranto se não tivesse pensado no porquê
de terem levado tudo e deixado somente aquilo. Arrastou-se até ele e
leu: “desculpa-me, Sónia. Deixaste-me sem saída.”
O bilhete não a abalou. Havia carregado tanto peso, que custava
acrescentar uns quilinhos? E ficou ali, calma, já sem chorar. Não a
assustavam mais aquelas quatro paredes horrendas e aquele tecto
decadente, pelo qual via as estrelas sem o brilho habitual. Elas
eram ofuscadas pela cacimba e ela nunca se desembaraçara de suas
coisas, as coisas da vida.
Ao amanhecer, dona Joana, a proprietária do cubículo e da casa
grande, dirigiu-se aos fundos do seu quintal para cobrar
mensalidades atrasadas. A sua paciência esgotara-se, estando
decidida a expulsar a inquilina. Aliás, nenhuma das desculpas de
Sónia a haviam convencido. “Como é que ela não pode me pagar se faz
dinheiro todos dias,” pensava. Seus filhos a acompanharam, dispostos
a intervir caso fosse necessário o uso de seus músculos. Mas aquele
aparato era desnecessário. Encontraram Joana a flutuar, apoiada
apenas por uma corda que partia do pescoço e terminava numa daquelas
janelas altas e sem vidros.
Houve o habitual susto de quem vê, inesperadamente, um morto. Os
filhos de dona Joana saíram sem sequer se preocupar em confirmar a
dona do cadáver. Horrorizou-lhes aquele olhar de espanto e fixo no
nada. Dona Joana, tentando entender qualquer coisa, viu o papel sujo
e amarfanhado algures e, com medo do seu conteúdo, leu: “desculpa-me
por fazer isto na sua casa. Não tive alternativa.”
(Mantida a grafia original)
E-mail:
meth_mz@hotmail.com
|