Folha seca
Adriano Macedo
Reminiscências
Aquele homem leva uma vida de autômato. Não por estar aposentado, muito menos por
ignorância ou estupidez. Por falta de direção e sentido. Ao contrário de quando era
responsável pelo destino de milhares de pessoas no comando de uma aeronave. Morreu-lhe a
mulher, de câncer, h?pouco mais de um ano. Com ela compartilhou quarenta anos de vida.
Acabara de chegar em casa. Entrou na sala e lembrou-se do cachorro ausente. O animal de
estimação o recebia com festa. 0 cão seguiu o destino da esposa, depois de meses sem
abanar o rabo. Não suportou a perda. O homem sentiu-se envergonhado; O cachorro conviveu
com a dona apenas dez anos e se entregou a uma prova de amor superior ?dele. ?assim
que se sentia e jurou não procurar outro calor na ausência da mulher. O coração em
turbulência não suportava a saudade. Viu, na estante da sala, a foto do único filho.
Mora no exterior, visita o Brasil uma vez ao ano. No Natal. Seguiu o próprio rumo e
também não pertence mais àquele homem.
Caminhou at?a cozinha para beber água. Viu a gaiola num canto na área de serviço.
Vazia. Desde o dia em que decidiu abrir a portinhola e deixar os canarinhos partirem. Para
que o canto não lhe trouxesse lembranças. "Qu?que ela t?fazendo aqui?",
surpreendeu-se o homem. Ele ordenara a empregada a se livrar daquela cela solitária havia
muito tempo.
Na prateleira de um dos quartos, viu os livros esquecidos. "Pra qu?ler?" S?
tinha prazer nas leituras ao lado da mulher. As histórias ganhavam vida. Ele na poltrona
da sala, a companheira na cadeira de balanço, fazendo croch? A cadeira se encontrava
ali, paralítica. Movimentos apenas nas recordações. Viagens não têm mais sentido sem
a mulher. Os pães não possuem o mesmo sabor. Nem o caf? A cafeteira ainda ?vermelha,
as marcas do p?e do filtro de papel são as mesmas, mas o caf?passado pela empregada,
h?poucos meses naquela casa, jamais soube acompanhar o leite com dignidade. A esposa
preparava todas as refeições. Para o homem, ninguém a substituir?
Reflexos
Era início de noite, acabara de voltar de uma caminhada pelas ruas do bairro, momento em
que tentava aterrissar e reabastecer-se. Entrou no quarto, abriu a porta do armário para
retirar algo e cristalizou o olhar diante do espelho. A imagem replicada o perturbou. Não
sabia o porqu? Era como se o rosto fosse o espelho das angústias. "?uma
fotocópia perfeita de nossas imperfeições. Ser?que ?pra isso que serve? E se não
existisse? As mulheres se sentiriam mais belas? Os homens mais jovens? As crianças mais
felizes? Os velhos mais dignos?". As abstrações começaram a inquiet?lo.
Lembrou-se de um dos contos de Jorge Luis Borges, um dos escritores preferidos na época
em que gostava de ler. Não se recordava da história, apenas de uma frase que o incomodou
naquele momento. "Os espelhos têm algo de monstruoso. Os espelhos e a cópula são
abomináveis, porque multiplicam número de homens".
Tirou a roupa e ficou mirando o espelho. A imagem refletida, implacável, atravessou-lhe o
espírito, embora ele não conseguisse entrar na alma do espelho. A calvície avançava, a
barriga crescera, os cabelos brancos no peito arrancavam das raízes sentimentos
profundos. O coração palpitou. As rugas simbolizavam a ampulheta do tempo a sinalizar os
caminhos traçados em direção ao fim, o pênis acentuara sua pequenez diante da vida
fugaz.
Concluíra que o espelho não enganava, ao contrário, ia fundo, era lente de aumento a
refletir os desenganos. "Ao duplicar o número de homens, a desilusão".
Abaixou-se, enfiou a mão no bolso da calça, que se encontrava no chão, apagou a luz do
quarto, voltou para diante do espelho e acendeu um isqueiro. Viu diante de si o monstro de
Borges. Não viu a saudade, porém a sentiu duplicada. Tremeu por dentro, como no dia do
enterro da esposa. Não suportava a ausência da mulher. E temia o inevitável. Sabia que
era uma aeronave sem conserto, manutenção quase impossível, máquina cujos motores
silenciariam em breve. Cerrou o punho, socou o monstro, a vista escureceu, estatelou-se no
chão. Os cacos de vidro machucaram menos que a imagem refletida no espelho.
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