Sonho de quase-consumo
Andr?Luiz Lac?Lopes
Deixou passar, deliberadamente, a semana de inauguração.
Muita gente, não se pode nem andar direito, muito menos escolher bem as compras.
Aproveitou o tempo para, em segredo, alimentar o seu incrível sonho de quase-consumo.
Finalmente, partiu para o tal supermercado, o maior e mais completo da América Latina,
segundo a propaganda luxuosa e extremamente estimulante, distribuída apenas para um
público-alvo de grande poder aquisitivo. Tinha conseguido o prospecto na casa do Dr.
Charles Enrico Gomyd, pelo nome, j?se v? autoridade governamental ou algum manda-chuva
de multinacional.
Ao entrar, sem esconder sua disposição, escolheu um carrinho com corrente e amarrou-o a
um outro. Ia começar pela seção de eletro-doméstico, mas foi praticamente impedido por
um vendedor, tipo relações públicas, da área da informática: o Senhor não gostaria
de conhecer nossas promoções especiais?
Ora, parecia at?combinado. Aceitou a "provocação" e começou escolhendo não
apenas um, mas dois computadores. Claro, tomou como base a sólida opinião do Seu Gomyd:
"Quem tem apenas um, não tem nenhum; a solução ideal ?ter um de mesa e outro
para viajar".
Vai da?que foi logo apanhando um note book, aliás um super note book (celeron 400, 64
Mb, HD de 6.4 Gb, CD-Rom 40x etc etc) e um PC "de mesa" com todos os
periféricos possíveis e imagináveis "mesa de ping-pong, meu camarada", pensou
e riu para seus botões). Quase com impaciência fingiu ouvir e entender a longa e
desnecessária explicação decorada do vendedor. Mesmo assim ficou maravilhado com a
rapidez com que ele fazia aparecer uma série infinita de lindos desenhos, inclusive um
sobre futebol de verdade, com o Flamengo vencendo sempre. Gostou também de saber que o
computador tinha uma agenda de endereços: Puta agenda, malandro!
Livre do vendedor vitorioso (ou quase-vitorioso), conforme seu desejo inicial, partiu para
a seção de eletro-doméstico, na ala dos importados: Caramba, isto aqui ?mesmo um
assombro!
Escolheu um equipamento japonês, talvez o menor de todos, mas, certamente, o mais
completo e o mais caro. Pudera, nunca vira tanto lazer num s?aparelho: tv a cores, DVD,
vídeo laser, tape deck, gravador de rolo...
O volume quase que lota um dos carrinhos, mal cabendo um mix incrível, recém-lançado,
que deixava todos os outros liquidificadores no chinelo. Nas virtudes e, também, no
preço.
Quase sem parar, ao passar pelos discos, escolheu, entre outros at?para o seu
espanto de velho pagodeiro um CD com o trio PavarottiCarreras-Domingo e um
recém-lançado conjunto dos principais momentos de Maria Callas:
Imagino estes três, mais a Dona Maria Callas formando um grupo de puxadores de
samba enredo l?na Escola, queria ver a cara do Walter Alfaiate mesmo com aquele
vozeirão!
Era apenas um começo, mas algumas pessoas j?começavam a olh?lo com admiração.
Este sabe o que ?bom!
Sem nenhum roteiro prévio de compras, da seção de eletrodomésticos, passou para a de
bebida.
Chateau Mouton-Rotchschild 95 Pauillac: 1.000 reais. em promoção, hum,
deve ser um vinho razoável.
Ato contínuo colocou duas garrafas no segundo carro. Deu alguns passos, pensou melhor,
lembrou das sangrias que fazia com o vinho Sangue da Terra (5 reais o garrafão), voltou e
pegou mais três garrafas.
Na mesma prateleira, mais adiante, passou para os uísques.
"Com menos de 21 anos, para mim não serve", lembrou a frase preferida do
Dr. Charles quando servia bebida para seus amigos. Não os amigos da capoeira, também
queridos, mas, segundo ele, sem "embocadura" para apreciar uma bebida mais
refinada. Vinha da? aliás, através da apresentação de Mestre Paulinho Botafogo (ou
Paulinho da Jussara), sua amizade com o Doutor, mais conhecido, nas rodas de capoeira da
Central e da Penha, como Gomyd Angoleiro ou, ainda, Gomyd Anestesia. Um dos poucos
capoeiras com dois apelidos, ninguém sabendo explicar muito bem a origem de nenhum deles.
Nem mesmo o Paulinho da Jussara, extraordinária figura humana, boêmio, filósofo,
tocador de cavaco, tremendo compositor (premiado!) , professor de português nas horas
vagas e, por esporte, dono de uma quitanda onde arma um senhor pagode de mesa todas as
sextas ("pagode em p??coisa de paulista almofadinha."...).
"Este negócio de uísque "di maior de idade " ?coisa mesmo de
gente rica, mas tudo bem ", filosofou encerrando a divagação paralela e retomando
as "compras ".
Pegou três garrafas de Royal Salute, "21 years old" e foi em frente. Ainda no
corredor das bebidas, reconheceu um rum cubano (Siete Anos) que tomara certa vez com um
colega de infância que s?falava em comunismo. Mais duas garrafas. Talvez por
associação de idéias (Cuba), das bebidas partiu para a tabacaria. Uma sala especial,
temperatura especialmente controlada, onde um cubano, profundo conhecedor de
"puros" e extremamente simpático (Señor Manuel) professorava sobre o assumo.
Ficou alguns minutos ouvindo, atentamente, as explanações; tempo suficiente para
decidir-se por duas caixas de Romeo y Julieta, tamanho Churchill, e uma caixa de Partagas,
em sutil homenagem a Ernesto Che Guevara (segundo o Senõr Manuel, Che Guevara preferia
esta marca). Seguiu em frente, levemente sorridente, lembrando-se dos charutos que ousava
enfrentar de vez em quando: "mata-ratos da pior qualidade" !.
A rápida exposição do cubano, entretanto, teve outros méritos, pois lembrou, não
apenas a importância de um bom casamento entre um bom charuto e um bom vinho, mas,
também, o casamento desta dupla, com um sem-número de "appetizers"
(tira-gosto, para os íntimos). Partiu, então, acelerado, para a seção de queijos,
frios e iguarias afins.
Que torresmo que nada, que guela de galinha, desta vez, teremos caviar, pat?de
foie gras, salmão e alguns quilos de brie, emmental, camembert, roquefort e outros
"fromages". Com todo respeito ?mortadela (partida a facão) e ao queijão
frito l?da quitanda do Paulinho da Jussara.
Do pensamento ?ação, com a ajuda do caderno de propaganda, quase lota o segundo carro
com cinco latas de caviar russo, queijos franceses e vários outros produtos desconhecidos
("se estão nesta área s?podem ser coisa fina").
Analisando, especialmente seu segundo carro, atentou para uma falha: como servir as
bebidas e as iguarias?
A esta altura, orgulhoso, j?estava trocando idéias avançadas sobre a arte de se viver
bem com alguns outros clientes. Nenhum, entretanto, com os carrinhos tão invejavelmente
cheios como os dele. A um destes, da maneira mais descontraída que pode teatralizar,
perguntou onde ficava a seção de copos e pratos.
Importados, ?claro; quero apenas copos de cristal Riedel e louças de porcelana
da China.
Conseguiu um terceiro carro para abrigar seus cristais e porcelanas; conseguiu, também,
que a gerência colocasse um auxiliar para ajud?lo com os três carros. Estava chegando
ao fim, faltava apenas mais uma coisa, um pequeno detalhe, mas que não abriria mão, em
hipótese alguma: queria fazer seu banquete, ao lado da mulherzinha amada (era
aniversário dela, seria uma surpresa), pisando num belo tapete persa. Não foi fácil
escolher, muito menos coloc?los ? comprou um grande e um pequeno sobre os três
carrinhos. Como escolher quando a vontade ?comprar todos? Acabou optando por um
hadzistan para o seu quarto e um pequeno mossul para o banheiro ("por que
não"?).
Sem pressa, escolheu a caixa com a maior fila.
Na fila foi virando celebridade: "Lindas compras, hem"? "Quem pode, pode,
n?quot;!
Ao perceber que estava chegando a sua vez, com insuspeitável charme, pediu que olhassem
seus carros, pois tinha que dar um pulo no banheiro. Generosamente, como se fosse um
adiantamento de gorjeta, deu ao garoto que lhe ajudava uma nota de cinco reais, exatamente
a metade do que levava no bolso. Passou "batido" pelo banheiro indo direto para
o ponto do ônibus que o levaria at?a Central do Brasil; de l? com mais duas
conduções, finalmente, chegaria ao seu quartinho humilde, num conjunto habitacional do
extinto BNH, na Baixada Fluminense.
Quartinho humilde, distante léguas e léguas do imponente e recém-inaugurado
supermercado, mas, diga-se, a bem da justiça e da verdade, cheio de sonhos
malandríssimos de consumo.
No caminho de casa, na venda do compadre Paulinho, saindo da rotina (normalmente levava
150 gramas) pendurou 400 gramas de mortadela "afinal, o presunto leva a fama,
mas todo mundo gosta mesmo ?de mortadela" e um xarope de groselha. Passando
pelo cemitério tratou de descolar, também, uma linda flor para sua namorada
aniversariante.
Que adorou a rosa, mas ficou furiosa por não ter participado da fascinante visita ao
supermercado.
"J?pensou completou meio zangada, meio sonhando aposentar o
leite de rosas e lotar mais dois carrinhos com altos perfumes (começou a ler uma lista
apanhada não se sabe onde): bulgari, cacharel, chanel, cartier, christian dior, givenchy,
guy laroche"...?!
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