Último
texto
O primeiro dia
Miguel Sousa Tavares
O que o acordou foi o silêncio. Primeiro, o do despertador que não tocou à hora
combinada todas as manhãs. Depois, o de outra respiração, que devia ouvir e não ouvia.
Estendeu a mão para o quente do outro lado da cama e encontrou o frio. Apalpou e
encontrou vazio. Então, sim, despertou completamente.
Um prenúncio de tragédia desceu por ele abaixo, como um arrepio. O que acabara de se
lembrar era que não acordara só por acaso ou por acidente: aquele era o primeiro dia, a
primeira manhã da sua separação o primeiro de quantos dias? em que
acordaria sempre sozinho, com metade da cama fria, metade do ar por respirar.
Era Abril, sábado e chovia. Sentado na cama, lembrou-se das instruções que dera a si
mesmo para aquela manhã: fazer peito forte à desgraça. Nada é inteiramente bom, mas
nada é inteiramente mau - pensou. Posso ler à noite até me apetecer sem me mandarem
apagar a luz, posso dormir atravessado na cama, posso-me livrar daquele rol de cobertores
com o qual ela me esmagava, fizesse sol, chuva ou frio, porque as mulheres são mais
friorentas que eu sei lá, posso usar a casa-de-banho todo o tempo que quiser, posso
espalhar as roupas, os jornais e os papéis pelo quarto à vontade e até - oh, suprema
liberdade posso fumar à noite na cama.
Levantou-se para se olhar ao espelho da casa-de-banho. Sorriu à sua própria imagem,
ensaiou-a calma, tranquila, confiante. Imaginou mentalmente o texto que poderia redigir
sobre si mesmo para a secção de anúncios pessoais do jornal: Divorciado, 40 anos,
bom aspecto, licenciado, rendimento médio-alto, casa própria e espaçosa, desportos, ar
livre, terno e com sentido de humor. Mulheres compatíveis? Deus do céu, dezenas
delas! Sou um partidão concluiu para o espelho.
Calmo, tranquilo e confiante, passou aos outros aposentos da casa para dar uma vista de
olhos ao resultado da partilha dos móveis, aliás feita sem grandes problemas, como é
próprio de gente civilizada. Por alto, entre o living, o hall, o
escritório, a cozinha, o quarto de casal e as duas casas-de-banho, estimou nuns
setecentos contos o preço da reposição das coisas em falta. Mais metade dos livros e
dos CD's, quase todas as fotografias dos últimos dez anos das suas vidas e algumas outras
coisas cujo verdadeiro valor era o vazio que encontrava se olhasse para o lugar onde elas
costumavam estar.
Até agora vou-me aguentando, considerou ele. Entre perdas e danos e a certeza
adquirida de que nada dura para sempre, restavam-lhe várias razões e objectos e
sentimentos para olhar em frente sem um sobressalto.
Enquanto fazia, com um prazer insuspeitado, o seu primeiro pequeno-almoço de homem só,
passou à fase seguinte do que chamara o plano de sobrevivência: desfolhar a
agenda de telefones em busca de amigos igualmente sós com quem fazer programas de
homens ou de antigas namoradas, que se tinham separado ultimamente ou outras que
achava acessíveis mas que nunca tivera a coragem e a oportunidade de aproximar. A
primeira desilusão foi com os amigos: de A a Z, realizou que só tinha dois amigos sem
mulher e, para agravar as coisas, com nenhum deles lhe apetecia sair e entrar numa de
anda daí e mostra-me lá como é o mundo lá fora. Quanto às mulheres que
julgava sortables, sempre eram cinco, mas o resultado foi quase patético. Duas já
não moravam naqueles telefones, outra tinha-se casado entretanto, e o marido estava ao
lado a ouvir a conversa, o que o deixou completamente idiota a inventar pretextos absurdos
para o telefonema. Do número da quarta atendeu uma criancinha e ele desligou e foi só na
última da lista que finalmente teve sorte: sim, a Joana morava ali, era ela própria ao
telefone. Não, não estava casada nem, pelo que, esforçadamente, percebeu, tinha
namorado. Sim, ok, por que não irem jantar logo, para falar do projecto que ele tinha e
onde ela poderia caber. Ah, a tua mulher não vem? Separados? Não, não sabia.
Recente? Pois, essas coisas são tão chatas, mas ainda bem que reages e tens projectos
novos e tudo! Ok, às oito e meia vens-me buscar. Ele teria desligado quase em
êxtase, não fosse a frase final dela, à despedida, que o deixou verdadeiramente
abalado. Olha, vais-me achar uma grande diferença. A idade não perdoa a ninguém,
não é?
Enfim, sempre era um date. O primeiro, certamente, de uma longa lista. O que
interessa se for um flop achas que ias encontrar uma mulher super logo ao
virar da esquina? É preciso é entrar no circuito, pá, começar a sair, a ser visto,
fazer com que as pessoas saibam que estás disponível. O resto vem por arrasto.
Passeou-se pela casa, pensativo, fumando o primeiro cigarro do dia. De repente lembrou-se
que ainda não tinha visto o quarto do filho. A cama e a escrivaninha tinham ido, assim
como praticamente todos os brinquedos. Sobrava um boneco de peluche, três ou quatro
carrinhos semi-partidos, uns legos e um quadro para fazer desenhos, com os
respectivos marcadores, pousados, à espera de uma mão de criança. A mesa-de-cabeceira
ficara e parecia absurda no meio do quarto, sem a cama nem os outros móveis, com um
retrato dele e do filho numa praia do Algarve, sorrindo, abraçados um ao outro. Sem saber
porquê, sentou-se no chão encostado à parede, muito devagar, a olhar para a fotografia.
Duas grossas lágrimas escorregaram-lhe pela cara abaixo e caíram na madeira do chão,
entre as pernas. Foi só então que ele percebeu que estava a chorar.
(foi mantida a grafia original)
Miguel Sousa Tavares nasceu no Porto, Portugal. Abandonou a advocacia pelo
jornalismo, até se entregar à escrita literária. Colunista do jornal Público e da
revista Máxima, é comentarista da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Jornalista
famoso e controvertido, é dono de opiniões fortes, trava polêmicas em vários campos:
política, literatura, esportes e outros. Seu primeiro livro lançado no Brasil foi
Equador, que obteve enorme receptividade entre o público leitor. O autor é
filho da grande poeta portuguesa Sophia de
Mello Breyner Andresen, falecida em 2004.
Obras:
Equador
Anos Perdidos
Não te Deixarei Morrer, David Crockett
Sul Viagens
Sahara A república da areia
O Segredo do Rio
Um Nómada no Oásis
O Dia dos Prodígios
Rio das Flores
Texto extraído do livro Não te deixarei morrer, David Crockett, Editora Nova
Fronteira Rio de Janeiro, 2005, pág. 23.
|