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O ex-mágico da Taberna
Minhota
Murilo Rubião
Inclina, Senhor, o teu ouvido, e ouve-me;
porque eu sou desvalido e pobre.
(Salmos. LXXXV, I)
Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior.
Na verdade, eu não estava preparado para o sofrimento. Todo homem, ao atingir certa
idade, pode perfeitamente enfrentar a avalanche do tédio e da amargura, pois desde a
meninice acostumou-se às vicissitudes, através de um processo lento e gradativo de
dissabores.
Tal não aconteceu comigo. Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude.
Um dia dei com os meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A
descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o dono do
restaurante. Ele sim, perplexo, me perguntou como podia ter feito aquilo.
O que poderia responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor
explicação para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado e
entediado.
Sem meditar na resposta, ou fazer outras perguntas, ofereceu-me emprego e passei daquele
momento em diante a divertir a freguesia da casa com os meus passes mágicos.
O homem, entretanto, não gostou da minha prática de oferecer aos espectadores almoços
gratuitos, que eu extraía misteriosamente de dentro do paletó. Considerando não ser dos
melhores negócios aumentar o número de fregueses sem o conseqüente acréscimo nos
lucros, apresentou-me ao empresário do Circo-Parque Andaluz, que, posto a par das minhas
habilidades, propôs contratar-me. Antes, porém, aconselhou-o que se prevenisse contra os
meus truques, pois ninguém estranharia se me ocorresse a idéia de distribuir ingressos
graciosos para os espetáculos.
Contrariando as previsões pessimistas do primeiro patrão, o meu comportamento foi
exemplar. As minhas apresentações em público não só empolgaram multidões como deram
fabulosos lucros aos donos da companhia.
A platéia, em geral, me recebia com frieza, talvez por não me exibir de casaca e
cartola. Mas quando, sem querer, começava a extrair do chapéu coelhos, cobras, lagartos,
os assistentes vibravam. Sobretudo no último número, em que eu fazia surgir, por entre
os dedos, um jacaré. Em seguida, comprimindo o animal pelas extremidades, transformava-o
numa sanfona. E encerrava o espetáculo tocando o Hino Nacional da Cochinchina. Os
aplausos estrugiam de todos os lados, sob o meu olhar distante.
O gerente do circo, a me espreitar de longe, danava-se com a minha indiferença pelas
palmas da assistência. Notadamente se elas partiam das criancinhas que me iam aplaudir
nas matinês de domingo. Por que me emocionar, se não me causavam pena aqueles rostos
inocentes, destinados a passar pelos sofrimentos que acompanham o amadurecimento do homem?
Muito menos me ocorria odiá-las por terem tudo que ambicionei e não tive: um nascimento
e um passado.
Com o crescimento da popularidade a minha vida tornou-se insuportável.
Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando na calçada,
arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. As pessoas que se encontravam nas
imediações, julgando intencional o meu gesto, rompiam em estridentes gargalhadas. Eu
olhava melancólico para o chão e resmungava contra o mundo e os pássaros.
Se, distraído, abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me
surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois outra. Por fim,
estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino lhes dar.
Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por um socorro que não poderia
vir de parte alguma.
Situação cruciante.
Quase sempre, ao tirar o lenço para assoar o nariz, provocava o assombro dos que estavam
próximos, sacando um lençol do bolso. Se mexia na gola do paletó, logo aparecia um
urubu. Em outras ocasiões, indo amarrar o cordão do sapato, das minhas calças
deslizavam cobras. Mulheres e crianças gritavam. Vinham guardas, ajuntavam-se curiosos,
um escândalo. Tinha de comparecer à delegacia e ouvir pacientemente da autoridade
policial ser proibido soltar serpentes nas vias públicas.
Não protestava. Tímido e humilde mencionava a minha condição de mágico, reafirmando o
propósito de não molestar ninguém.
Também, à noite, em meio a um sono tranqüilo, costumava acordar sobressaltado: era um
pássaro ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido.
Numa dessas vezes, irritado, disposto a nunca mais fazer mágicas, mutilei as mãos. Não
adiantou. Ao primeiro movimento que fiz, elas reapareceram novas e perfeitas nas pontas
dos tocos de braço. Acontecimento de desesperar qualquer pessoa, principalmente um
mágico enfastiado do ofício.
Urgia encontrar solução para o meu desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte
poria termo ao meu desconsolo.
Firme no propósito, tirei dos bolsos uma dúzia de leões e, cruzando os braços,
aguardei o momento em que seria devorado por eles. Nenhum mal me fizeram. Rodearam-me,
farejaram minhas roupas, olharam a paisagem, e se foram.
Na manhã seguinte regressaram e se puseram, acintosos, diante de mim.
O que desejam, estúpidos animais?! gritei, indignado.
Sacudiram com tristeza as jubas e imploraram-me que os fizesse desaparecer:
Este mundo é tremendamente tedioso concluíram.
Não consegui refrear a raiva. Matei-os todos e me pus a devorá-los. Esperava morrer,
vítima de fatal indigestão.
Sofrimento dos sofrimentos! Tive imensa dor de barriga e continuei a viver.
O fracasso da tentativa multiplicou minha frustração. Afastei-me da zona urbana e
busquei a serra. Ao alcançar seu ponto mais alto, que dominava escuro abismo, abandonei o
corpo ao espaço.
Senti apenas uma leve sensação da vizinhança da morte: logo me vi amparado por um
pára-quedas. Com dificuldade, machucando-me nas pedras, sujo e estropiado, consegui
regressar à cidade, onde a minha primeira providência foi adquirir uma pistola.
Em casa, estendido na cama, levei a arma ao ouvido. Puxei o gatilho, à espera do
estampido, a dor da bala penetrando na minha cabeça.
Não veio o disparo nem a morte: a máuser se transformara num lápis.
Rolei até o chão, soluçando. Eu, que podia criar outros seres, não encontrava meios de
libertar-me da existência.
Uma frase que escutara por acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em
definitivo com a vida. Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era
suicidar-se aos poucos.
Não me encontrava em condições de determinar qual a forma de suicídio que melhor me
convinha: se lenta ou rápida. Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.
1930, ano amargo. Foi mais longo que os posteriores à primeira manifestação que tive da
minha existência, ante o espelho da Taberna Minhota.
Não morri, conforme esperava. Maiores foram as minhas aflições, maior o meu desconsolo.
Quando era mágico, pouco lidava com os homens -o palco me distanciava deles. Agora,
obrigado a constante contato com meus semelhantes, necessitava compreendê-los, disfarçar
a náusea que me causavam.
O pior é que, sendo diminuto meu serviço, via -me na contingência de permanecer à toa
horas a fio. E o ócio levou -me à revolta contra a falta de um passado. Por que somente
eu, entre todos os que viviam sob os meus olhos, não tinha alguma coisa para recordar? Os
meus dias flutuavam confusos, mesclados com pobres recordações, pequeno saldo de três
anos de vida.
O amor que me veio por uma funcionária, vizinha de mesa de trabalho, distraiu-me um pouco
das minhas inquietações.
Distração momentânea. Cedo retornou o desassossego, debatia-me em incertezas. Como me
declarar à minha colega? Se nunca fizera uma declaração de amor e não tivera sequer
uma experiência sentimental!
1931 entrou triste, com ameaças de demissões coletivas na Secretaria e a recusa da
datilógrafa em me aceitar. Ante o risco de ser demitido, procurei acautelar meus
interesses. (Não me importava o emprego. Somente temia ficar longe da mulher que me
rejeitara, mas cuja presença me era agora indispensável.)
Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois, tendo dez anos
de casa, adquirira estabilidade no cargo.
Fitou-me por algum tempo em silêncio. Depois, fechando a cara, disse que estava atônito
com meu cinismo. Jamais poderia esperar de alguém, com um ano de trabalho, ter a ousadia
de afirmar que tinha dez.
Para lhe provar não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que
comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas um papel
amarrotado fragmento de um poema inspirado nos seios da datilógrafa.
Revolvi, ansioso, todos os bolsos e nada encontrei.
Tive que confessar minha derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela
fora anulada pela burocracia.
Hoje, sem os antigos e miraculosos dons de mago, não consigo abandonar a pior das
ocupações humanas. Falta-me o amor da companheira de trabalho, a presença de amigos, o
que me obriga a andar por lugares solitários. Sou visto muitas vezes procurando retirar
com os dedos, do interior da roupa, qualquer coisa que ninguém enxerga, por mais que
atente a vista.
Pensam que estou louco, principalmente quando atiro ao ar essas pequeninas coisas.
Tenho a impressão de que é uma andorinha a se desvencilhar das minhas mãos. Suspiro
alto e fundo.
Não me conforta a ilusão. Serve somente para aumentar o arrependimento de não ter
criado todo um mundo mágico.
Por instantes, imagino como seria maravilhoso arrancar do corpo lenços vermelhos, azuis,
brancos, verdes. Encher a noite com fogos de artifício. Erguer o rosto para o céu e
deixar que pelos meus lábios saísse o arco-íris. Um arco-íris que cobrisse a Terra de
um extremo a outro. E os aplausos dos homens de cabelos brancos, das meigas criancinhas.
Murilo Eugênio Rubião nasceu em Silvestre Ferraz, hoje Carmo de
Minas MG, no ano de 1916. Formado em Direito, foi professor, jornalista, diretor de
jornal e de estação de rádio (Rádio Inconfidência). Foi o responsável pela
organização do Suplemento Literário do Minas Gerais (1966). Publicou seu primeiro livro
de contos "O ex-mágico" em 1947; "A estrela vermelha" (1953);
"Os dragões e outros contos" (1965); "O pirotécnico Zacarias" e
"O convidado" (1974); "A casa do girassol vermelho" (1978); e "O
homem do boné cinzento e outras histórias" (1990). Teve seus principais contos
traduzidos para a língua inglesa, alemã e espanhola. Foram adaptado para o cinema os
contos: "A Armadilha", "O pirotécnico Zacarias", "O ex-mágico
da Taberna Minhota" e "O bloqueio". Para o teatro, foram adaptados "O
ex-mago", "The piranha lounge" (peça baseada no autor diversos
contos) e "O ex-mago da Taberna Minhota". Sua obra já foi objeto de dezenas de
artigos publicados em jornais e revistas, além de ter sido estudada em mais de quarenta
teses de doutorado e dissertações de mestrado, no Brasil e no exterior.
O escritor faleceu em Belo Horizonte, em 1991, onde residiu a maior parte de sua vida.
O texto acima foi extraído do livro "O pirotécnico Zacarias e outros contos",
Editora Companhia das Letras São Paulo, 2006, pág. 19, organização de Humberto
Werneck, postfácio de Jorge Schwartz.
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