Último
texto
Carla
Mauro Pinheiro
O sol mergulhava no
horizonte, como um lerdo suicida pulando pela janela de mais um dia.
Acendi um cigarro e fiquei olhando para a rua, vendo as pessoas
fugirem dos carros enfurecidos. Pura covardia, os veículos arrancam
cada vez mais rápido e essa gente já mal consegue andar. No outro
lado da sala, o computador está aceso e abandonado, sua tela branca
como a minha mente, porém muito mais brilhante. Não é mais preciso
digitar nada. Está tudo ali. Não disse? Foi só eu me distrair e
outro atropelamento acontece lá em baixo. Um ônibus desta vez.
Curiosos solidários acercam-se do corpo inerte. No bloco que deixo
preso ao batente da janela, escrevo o número 54 e a data.
Do centro da sala, vem a voz de Carla.
— É estranho. Não sei como alguém pode sentir atração por alguma
coisa deformada... incompleta.
Ela está sentada à contraluz, os cachos de seus cabelos
louros atravessados pelos raios da luminária atrás do sofá. Sua
solitária perna direita repousada sobre a mesa do telefone. O
crepúsculo começava a se insinuar dentro do apartamento.
— Pelo menos, você
acabou de vez com minha esperança de ser amada inteiramente. Você...
ninguém nunca poderá me amar inteiramente. As vezes, eu acho que não
é de mim que você gosta. O que te atrai é o que está faltando, que
foi arrancado de mim.
Depois de dois anos sem
quase poder se levantar, Carla além de engordar também aprimorara
seu discurso. Quando a conheci no hospital, mesmo após o trauma, seu
domínio da língua era rudimentar. Agora, adquirira vocabulário e o
utilizava fartamente. O conteúdo do que dizia não importava muito.
Era sempre o mesmo, aquela fúria inesgotável contra sua própria
sorte. Ela precisava se maltratar de vez em quando. E que não
tentassem impedi-la. Era como uma expansão do seu ser mutilado, que
quer correr e dançar, mas só tem palavras para se equilibrar. E eu
estava ali também para isso: aturar suas recaídas de anjo soturno a
quem eu prometera o sol.
Certa vez, após longa
reflexão, Carla me disse que se pudesse escolher, preferiria perder
a voz do que uma perna. Nossas conversas eram muito estranhas, ainda
que nos pare cessem naturais. Eu não disse nada, sempre me
refugiando no silêncio, apenas pensei que concordava com ela. Sua
voz voltou a voar pela sala.
— E macabro saber que a
nossa imperfeição é o que mais encanta alguém. Acho que você é mais
doente do que eu, sabe? Tem algo de sádico nisso.
— Você não está doente,
Carla. Sua saúde está ótima...
— Mas você está doente,
não está? Será que já não é hora de você usar essa fartura de pernas
e fazer alguma coisa da sua vida? Ou continuar com o que foi
interrompido. Escreve seu segundo livro, vai. Está difícil de sair,
né? Mal nas céu e você já é um escritor extinto.
— Não sou mais um
escritor. Acho que vou lutar boxe. Pelo menos poderei usar mais as
minhas pernas.
— Coitado de você. Na sua idade, já não dá mais para aprender. Vai
ganhar muita porrada.
Carla faz um esforço para colocar a perna sobre o sofá. Seu olhar já
brilha novamente. Por um nada, ela é tomada pela emoção e as
lágrimas começam a jorrar, os vasos lacrimais parecem romper-se por
trás de seus olhos claros. Expliquem- me a química da dor.
— Se é para ganhar
pomada também, vou pensar em outra coisa.
— Chega mais perto, meu
pugilista. Vamos conversar. Talvez a gente ache alguma idéia juntos.
Pronto, ela já está
meiga outra vez. Ao me aproximar dela, minha perna direita acerta em
cheio a mesinha do telefone. Aquilo a faz rir e relaxar. Ajoelhando
ao pé do sofá, encosto minha cabeça sobre sua barriga e tento não
pensar em coisa alguma.
O que mais me apraz ao
fazer amor com Carla, além de lhe proporcionar léguas de emoção que
sua perna, mesmo acompanhada de outra, nunca conseguiria transpor, é
possuí-la transversalmente, com ampla visão do seu corpo. Seus
olhos fechados, seu pé se retorcendo, seu fêmur amputado, sua pele
remendada roçando sobre meu ventre. Como se eu a fizesse levitar,
perpendicular ao meu corpo.
— Carla, você não acha
que nossos diálogos soam como os de personagens de um livro?
— Um livro? Quelle
drôle d’idée, un livre! Nunca pensei nisso. Você deve saber
melhor do que eu. O que você ouve andando por aí?
— Ouço uma língua
enlouquecida, selvagem, que os especialistas com sua mania de tudo
especificar chamam de híbrida. Mas não importa o que digam, a
ignorância me parece mais criativa do que o saber...
— Você chama de
criatividade esta algaravia?
— Talvez, mas a
confusão é mais saudável do que a lógica.
— Mas não chega a lugar
algum.
— Chegar a algum lugar
não tem a menor importância
para a confusão. Ainda por cima, que mania de querer sempre chegar
a algum lugar...
Carla põe o dedo sobre
minha boca para eu parar de falar. De repente, ela parece muito
cansada. Virando-se sobre o sofá, ela fica de costas para mim e diz,
— Vem, vem por trás de
mim. Gosto de sentar sobre suas pernas. Como se fossem minhas.
A noite se esparrama
pela sala deixando-nos ilhados sob um pálido foco de luz, Posso
sentir os pulmões de Carla arfando contra meu peito. Lá fora, outra
freada seguida de um baque seco e o alvoroço inútil dos passantes.
Número 55, pensei.
Mauro Pinheiro nasceu em 1957, no Rio de Janeiro (RJ). Aos 17 anos saiu pelo
mundo. Viajou pelo Brasil durante três anos, vivendo de bicos e da solidariedade dos
amigos que fez. Em 1978, saiu do país. Morou no Iraque, Inglaterra, França e Bélgica.
Trabalhou como intérprete; clandestino, criou cabras, cortou lenha e, entre uma coisa e
outra, começou a escrever seu primeiro romance. Mora no Rio desde 1990. Tradutor
profissional, é o autor de Cemitério de navios (romance, 1993),
Aquidauana e outras histórias sem rumo (contos, 1997), Concerto para
corda e pescoço (romance, 2000), e Quando só restar o mundo (romance,
2002). Publicou contos nas revistas "Tange Rede" e "Ficções" (RJ), e
no livro "Geração 90 manuscritos de computador".
Texto extraído do livro Geração 90 manuscritos de computador, Boitempo Editorial, São Paulo, 2001, pág. 204, organização de Nelson de Oliveira.
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