Gestantes, Idosos e Deficientes
Mário Prata
Sábado, supermercado supercheio. Entro para comprar três latinhas de cerveja. Dab,
alemã, sem álcool.
Vou para a "fila de até dez",
que está emperrada porque a mocinha está fechando uma temporada e, para passar para
a outra mocinha, tem de dar baixa não sei em quê. Olho as filas normais. Imensas. Gente
com dois carrinhos. Alfaces convivendo com milhares de papéis higiênicos. Lá no fundo,
uma fila. Só um velhinho.
E a placa, em cima: gestantes, idosos,
deficientes físicos. Dou uma piscada para a mocinha, a mocinha faz um beiço de tudo bem
e eu fico ali. Só que chega uma idosa. E gorda e mal-humorada. No que eu me viro para
dar o lugar a ela, ela ataca:
Está grávida, é?
Evidentemente que ela estava a falar
comigo e eu não estava grávido. Não tinha nenhum sintoma, até então. Mas a idosa era
agressiva e eu resolvi não ceder o lugar para ela. E senti uma certa solidariedade do
velhinho que lutava para enxergar o dinheiro dentro da carteira. Fiquei na minha. Mas a
idosa estava a fim de briga:
Idoso, meu senhor?
Eu, ainda calmo:
Não senhora. Envelhecente.
Ela ficou pensando na palavra, mas acho que não captou o neologismo.
Resolvi olhar as compras dela. Bananas. Milhares, milhões de bananas. E nada mais. E a
revista Capricho.
E ela caprichou na terceira estocada:
Por acaso o senhor é deficiente físico?
E olhou para as minhas pernas que estavam onde sempre estiveram, firmes. Fiz cara de
triste:
Sou. Infelizmente sou deficiente físico.
Ela se abalou:
Desculpa, eu não havia percebido. É que sempre tem uns malandros, sabe? Uns
espertinhos.
Eu fiquei quieto. Ela me cedeu a vez. Coloquei as cervejas em cima da mesa. Mas ela era
curiosa:
De nascença?
É, sim senhora. Os dentes. Está vendo os meus dentes? São pra frente. Isso é
uma deficiência física, não é?
Ela quase chamou o gerente:
Engraçadinho...
E eu:
E tem mais: meu fígado é
deficiente físico. Está despedaçado. Meu pulmão, não é de hoje. Completamente
deficiente. E se a senhora quiser, tenho uma unha encravada fisicamente deficiente.
Não estou achando a menor
graça!..
E a vista? Está escrito na minha
carteira de motorista: deficiente visual! Escuto pouco, minha senhora. Tenho essa
deficiência também: auditiva.
Você é um idiota. Vou falar com o gerente.
E partiu. Paguei a minha conta, estava
saindo quando ela chega com o gerente. Ela já havia infernizado o rapazinho, que veio por
educação, mesmo. O gerente:
Por favor, o que está
acontecendo?
Eu:
É essa senhora, seu gerente. Além de idosa, deficiente física!
Eu? Deficiente física?
Claro, ou a senhora estava na fila porque é gestante? Que eu saiba, ninguém
engravida com bananas. Ainda mais verdes e duras como essas!
Fomos todos para a delegacia. A mulher
era delegada aposentada. Desacato à autoridade. Documentos. A mulher era mais jovem do
que eu. Bingo! Tava era acabada mesmo! Porque, gestante, não era. Nem idosa.
Devia ser, como eu, deficiente física. E
mental.
E o gerente, aproveitou:
Tem só um detalhe, minha senhora. A senhora não pagou as bananas.
Te poupo do que ela disse para o
rapazinho fazer com as bananas duras e verdes.
O texto acima foi extraído da coluna que o escritor mantém no jornal "O Estado de
São Paulo".
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