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Crônica da casa assassinada
- Primeira narrativa do farmacêutico -
Lúcio Cardoso
Meu nome é Aurélio dos Santos, e há muito tempo que estou estabelecido em nossa pequena
cidade com um negócio drogas e produtos farmacêuticos. Minha loja pode mesmo ser
considerada a única do lugar, pois não oferece concorrência um pequeno varejo de
produtos homeopáticos situado na Praça Matriz. Assim, quase todo o mundo vem fazer suas
compras em minha casa, e mesmo para a família Meneses tenho aviado muitas receitas.
Lembro-me muito bem da noite em que ele veio me procurar. Achava-me sentado sob uma
lâmpada baixa, a fim aproveitar a claridade o mais que pudesse, já que a eletricidade em
nossa vila é deficiente, e eu consultava um dicionário de pós medicinais impresso em
letras exageradamente miúdas. A noite mal começara a baixar, e a loja se achava cheia de
mariposas que giravam num círculo cada vez mais fechado em torno da lâmpada. Isto me
enervava e eu sacudia a cabeça para afugentá-las, pois tinha as duas mãos ocupadas em
sustentar o grosso volume. Não fechara inteiramente a porta, cuidando que apareceria
algum freguês retardatário. Como ouvisse um leve rangido, ergui a cabeça e percebi a
mão que empurrava a porta depois o rosto surgiu devagar, sem procurar produzir
efeito, apenas como se evitasse uma intervenção repentina.Avançou dois passos e eu
reconheci então de quem se tratava. Pareceu-me mais pálido do que habitualmente, de
modos hesitantes, olhos desconfiados.
Boa noite, Sr. Demétrio disse eu, naturalmente estranhando a visita.
Talvez seja necessário explicar aqui por que aquela chegada não me pareceu um fato
banal é que eles, os Meneses, por orgulho ou por suficiência, eram os únicos
fregueses que jamais pisavam em minha casa. Mandavam recados, aviavam receitas, pagavam as
contas por intermédio dos empregados. Eu os via passar com certa freqüência, quase
sempre de preto, distantes e numa atitude desdenhosa. Dizia comigo mesmo: "São os da
Chácara" e contentava-me em inclinar a cabeça num hábito que já se perdia
longe através do tempo. Aliás, devo acrescentar ainda que caminhavam quase sempre
juntos, o Sr. Valdo e o Sr. Demétrio. Podiam não ser muito unidos lá dentro de casa,
tal como corria de boca em boca, mas nas ruas eu os encontrava sempre ao lado um do outro,
como se neste mundo não houvesse melhores irmãos. Uma única vez vi o Sr. Demétrio em
companhia de sua esposa, Dona Ana, que a voz corrente dizia encerrada obstinadamente em
casa, e sempre em prantos pelo erro que cometera contraindo aquele matrimônio. Não era
uma Meneses, pertencia a uma família que antigamente morara nos arredores de Vila Velha,
e fora aos poucos triturada pela vida sem viço e sem claridade que os da Chácara
levavam. Lamentava-se muito a sua sorte, e alguns chegavam mesmo a dizer que não era de
todo destituída de beleza, se bem que um tanto sem vida.
Boa noite respondeu-me o Sr. Demétrio, e ficou diante de mim, parado,
esperando sem dúvida que eu iniciasse a conversa. Não sei que esquisita maldade se
apoderou naquele instante do meu coração ah, aqueles Meneses! e por puro
capricho continuei em silêncio, o dicionário aberto entre as mãos e contemplando sem
pestanejar a face que se achava diante de mim. Devo esclarecer desde já que se tratava de
um homem mais baixo do que alto, extraordinariamente pálido. Nada em sua fisionomia
parecia ter importância, a natureza se encarregara de moldar uma série de traços sem
relevo, tudo batido um tanto a esmo, circundando o ponto central, o único que se via
desde o início e que atraía imediatamente a atenção: o nariz, grande, quase agressivo,
um autêntico nariz da família Meneses. O que mais impressionava nele, repito, era o
aspecto doentio, próprio dos seres que vivem à sombra, segregados do mundo. Talvez essa
impressão viesse exclusivamente de sua tez macerada, mas a verdade é que se adivinhava
imediatamente a criatura de paragens estranhas, o pássaro noturno, que o sol ofusca e
revela.
Queria um conselho do senhor disse ele afinal, com um suspiro.
Inclinei a cabeça e, depositando o livro sobre a mesa, voltei-me, manifestando
assim que me achava à sua disposição. Ele não ousava esclarecer o que o trouxera,
talvez preferisse ser inquirido, e fitava-me sempre, os olhos miúdos rolando de um o para
outro.
No que for possível... adiantei.
Essas simples palavras como que tiveram o dom de arrancar-lhe um peso do espírito.
Qualquer coisa se iluminou escassamente em sua fisionomia e ele se inclinou sobre o
balcão, num gesto de maior intimidade. Não digo que sua voz fosse totalmente segura, mas
foi vencendo aos poucos as dificuldades, até que conseguiu falar com relativa calma.
Confessou-me que sua mulher andava naqueles últimos tempos preocupada com um fato
estranho que ocorria na Chácara. Disse isto e, depois de um ligeiro devaneio sobre os
perigos da vida na roça, deteve-se e examinou-me para ver se eu acreditava no que dizia
e não sei por quê, neste inesperado silêncio que se formou entre nós, tive a
intuição de que mentia, e que desejava que eu acreditasse na sua mentira. Ora, para um
Meneses vir a minha casa .era necessário que realmente um fato importante ocorresse, e
tão mais importante ainda, já que devia ser apresentado aos meus olhos com todas as
roupagens de uma rebuscada mentira. Levantei-me, com a atenção agora inteiramente
desperta, e debrucei-me ao seu lado sobre o balcão. Deste modo via seu rosto quase junto
ao meu, e não poderia me escapar a menor emoção que o alterasse. Essa atenção pareceu
desagradá-lo, e ele insistiu novamente, olhando-me pelo canto dos olhos, sobre as
ocorrências que deveriam estar preocupando Dona Ana. Ora, todo o mundo em nossa pacata
cidade sabia muito bem que a ela não interessavam as coisas da Chácara, e que seu tempo
era pouco para lamentar e chorar as desditas de sua vida. Assim, era inadmissível que ela
viesse a se interessar por qualquer "fato estranho" que estivesse ocorrendo na
casa dos Meneses. No entanto guardei silêncio, e ele devia se ter contentado com este
silêncio. De cabeça baixa, folheando à toa as folhas amareladas do meu .dicionário,
ouvi a curiosa informação de que um animal desconhecido andava preocupando os moradores
da Chácara. Aparentemente não existia nada de sensacional em semelhante notícia, mas a
insistência na palavra "desconhecido" e o modo particular como explicou os
ruídos e as pegadas que surgiam, trouxeram-me insensivelmente um sorriso aos lábios. Ele
percebeu este riso e insistiu na frase com certa veemência.
Animal desconhecido? repeti, procurando encontrar-lhe a expressão do
olhar.
Então ele fixou-me como se entregasse toda a sua alma:
Sim, um cão selvagem; um lobo.
Novamente se estabeleceu um pequeno silêncio entre nós; fechei definitivamente o
livro e indaguei:
Neste caso, em que posso lhe ser útil?
Ele estendeu a mão, pousou-a no meu braço e pelo tremor que a sacudia,
compreendi que havíamos atingido o ponto nevrálgico da questão.
Que me aconselha o senhor? disse. Foi para isto, exclusivamente
para isto, que.vim aqui.
Devia ser verdade, nada me induzia a suspeitar de uma mentira oculta por trás
daquela afirmativa, mas mesmo assim não pude deixar de soltar um riso breve:
Mas, Sr. Demétrio, eu nada entendo de caçadas! Talvez fosse melhor ter
procurado . . .
Ele balançou a cabeça com energia:
Não! Não! Existem razões para ter vindo à sua procura. Por exemplo,
poderia sugerir-me um veneno, ou qualquer coisa violenta que pudesse ser colocada numa
armadilha.
Não se liquidam lobos com venenos disse, e fiz menção de colocar o
dicionário no seu lugar, sobre a caixa registradora.
Ele devia ter apreendido o significado exato do meu gesto, o desinteresse que
comportava. Fitou-me, e com olhos tão duros, tão cheios de súbito e agressivo rancor,
que não pude deixar de sentir um estremecimento íntimo. Sem dúvida viera ali por outra
causa, isto era mais do que certo, e, receando ir direto ao assunto, tergiversava, dava
voltas ao problema, esperando que eu o auxiliasse. Via agora que eu não tinha a menor
intenção de vir em seu socorro (por que viria? Desde há muito, desde tempos imemoriais,
que entre mim e a família Meneses não existia o menor vislumbre de simpatia. . . ) e.
fora esta minha atitude que lhe arrancara aquele olhar eloqüente e cheio de cólera. Ao
contrário, em vez de facilitar-lhe a confissão (ou .o que quer que fosse . . . ) mudei
completamente de assunto, como se a história do lobo jamais houvesse sido pronunciada.
Havia um lado da parede da farmácia que se achava em péssimo estado, devido a uma
pequena explosão, provocada por um prático sem experiência. Mostrei-lhe a cal
arruinada, os tijolos à mostra, acrescentando com um sorriso:
Tempos duros os que vivemos, Sr. Demétrio! Veja esta parede que carece tanto
de reparos! Há dois meses espero conseguir o dinheiro necessário, e até agora não fiz
nem sequer encomendar um tijolo!
Diante de mim, imóvel, ele seguia com extrema atenção aquela fingida
volubilidade. Provavelmente estaria procurando adivinhar em minhas palavras um sentido
oculto, uma insinuação qualquer e eu confesso que nada mais queriam dizer além
do sentido nu que exprimiam, nada, senão que o muro necessitava de conserto, e que eu
não possuía o dinheiro necessário para fazê-lo. No entanto, uma inspiração pareceu
tocá-lo de repente, vi uma pequena luz se acender em seus olhos, enquanto mais uma vez
estendia a mão e tocava-me o braço:
Talvez possa ajudá-lo, quem sabe? Um tijolo a mais ou a menos, sempre
estamos aqui para ajudar os amigos.
Ao ouvir estas palavras, eu me achava de costas: voltei-me devagar e fitei-o bem no
fundo dos olhos. Imaginei ver então agitar-se naquelas profundezas alguma coisa brilhante
como a esperança de quê, meu Deus, nem eu próprio o poderia dizer jamais, tão
recôndita cintilava diante de mim, tão secreta, tão acrisolada no fundo triste daquela
alma. Ele não desviou a vista, ao contrário, ofereceu-se inteiro como quem abre um livro
diante de mim, e assim ficamos durante alguns segundos, transitando de um para o outro,
invisíveis e rápidos, pensamentos sem nexo, restos de idéias e sentimentos, coisas que
o inconsciente apenas trazia. à tona, mas que nos faziam atingir uma importante fase de
compreensão.
Uns tijolos. . . murmurei É exatamente do que eu preciso.
Digamos . . . um carro deles? sugeriu, debruçando-se familiarmente
sobre o balcão.
Oh, decerto ele arfava um pouco, e já seus olhos, inteiramente acesos, sondavam-me
a face com avidez, buscavam-me a palavra de pronta aquiescência, numa falta de pudor,
numa pressa que me escandalizava quase. Ainda assim, balancei a cabeça com ar penalizado:
Um carro! Digamos três, Sr. Demétrio, não consigo tapar aquele rombo com
menos de três carros de tijolos!
Qualquer coisa como um sorriso um diminuto, um insignificante sorriso de
vitória esboçou-se em sua face pálida. Como eu aguardasse, ele aquiesceu com um
movimento de cabeça. Havíamos atingido um terreno de onde não me seria possível
recuar, e foi portanto com a mais serena das vozes que voltei ao assunto inicial:
Um lobo numa chácara é sempre perigoso. Contudo. . .
Repetiu sufocado, como se lhe custasse um esforço imenso aquela palavra:
Contudo. . .
Dei alguns passos pela loja, procurando mostrar-me o mais natural possível:
Contudo existem meios práticos de liquidá-los, sem que seja necessário
recorrer ao veneno.
Por exemplo... sugeriu ele.
Abandonei-o um instante sem resposta, dirigindo-me ao interior da casa. Devo
esclarecer que ocupava um modesto aposento dos fundos, mal iluminado e de assoalho
periclitante, cuja única vantagem era me oferecer guarida durante a noite, próximo à
loja, podendo assim atender algum freguês que surgisse em horas avançadas. Corria no
entanto a notícia de que alguns ladrões andavam operando em nossa pequena cidade, e
este, sem dúvida, foi o motivo que me levou a guardar na gaveta da cômoda, entre peças
de roupa passada, um pequeno revólver. "Não me apanharão desprevenido"
dizia comigo mesmo. Assim, abri a gaveta e tateei entre a roupa, não tardando muito a
encontrar o que procurava. Silencioso como me afastara, voltei à farmácia e depositei a
arma sobre o balcão.
Que é isto? indagou o Sr. Demétrio sem ousar tocar no objeto.
Oh exclamei apenas uma brincadeira. É de manejo fácil, mas
liquida qualquer lobo.
Ele pareceu hesitar, fixando sempre a arma, sem coragem para tocá-la. Não sei que
confusos pensamentos se digladiavam no seu íntimo sei apenas que em certo momento,
estendendo devagar a mão, tomou o revólver e examinou-o erguido quase à altura dos
olhos.
É uma arma feminina disse, fazendo cintilar as incrustações de
madrepérola que bordavam o seu cabo.
Pertenceu à minha mãe esclareci.
Ele rodava a arma, e já agora eu podia perceber que a satisfação brilhava
claramente em seus olhos.
Funciona bem? indagou, apontando o cano para o fundo da loja.
Perfeitamente.
E tentando desvanecer seus últimos escrúpulos, acrescentei:
- É uma arma como hoje não se fabrica mais.
A partir desse ponto, podia se dizer que ele estava definitivamente conquistado.
Vendo-o, eu indagava de mim mesmo se aquele Meneses não teria vindo à minha casa
precisamente para obter a arma eles, que eram tão ricos em recursos e estratagemas
acaso poderiam deixar de ter em casa um revólver idêntico àquele? Em que
circunstâncias o utilizariam, sob que pretexto comprometeriam um outro na ação que
provavelmente estariam prestes a executar? E se se tratasse na verdade de um lobo a
idéia era quase ingênua... por que não liquidá-lo de um modo mais simples, com
uma armadilha, por exemplo? De qualquer modo, ergui os ombros o negócio me
convinha.
O Sr. Demétrio experimentou ainda o gatilho, retirou o tambor, chegou a esfregar o
cano na manga do paletó e era mais do que evidente que tudo aquilo lhe causava um
secreto, um intenso prazer, como se desde já, da obscuridade da farmácia, sentisse seus
inimigos trucidados. Parou afinal o exame e fitou-me e posso jurar que só um
sentimento muito fundo, talvez antigo, mas imoral e cheio de impiedade, desenhou o sorriso
que aflorou à sua face ah, um sorriso de entendimento, de alguém que se sente
perfeitamente seguro do valor da transação que acaba de realizar. Ao mesmo tempo colocou
a mão sobre o meu braço:
Obrigado, amigo. Creio que não existe mesmo melhor meio para liquidar lobos.
. .
Sorri também, despedimo-nos. O Sr. Demétrio encaminhou-se para a rua, apertando o
revólver no fundo do bolso; eu balançando a cabeça os mistérios da natureza
humana voltei ao meu dicionário.
Lúcio Cardoso, mineiro de Curvelo, nasceu em 14-08-1912. Chamado pelo crítico
Alfredo Bosi de "inventor de totalidades existenciais", Lúcio foi escritor,
dramaturgo, jornalista, e poeta. Realizou, com Paulo César Saraceni, o primeiro
longa-metragem do Cinema Novo. Nos últimos anos de sua vida, pintava. Para ele, a arte
era vital, tanto que com ela fez um pacto, utilizando-se como ficcionista
monumental que era simultaneamente de diversos recursos narrativos (diários,
memórias, cartas, confissões, poesias, depoimentos...) para, articulando a suposta
fragmentação, fazer surgir a tragédia humana com toda sua carga de paixão, angústia,
erotismo, solidão e desespero. Em um universo ontologicamente dilacerado, com uma prosa
cuja poesia dá vazão ao desejo transgressivo, os personagens se desnudam em tensões
recriadoras da objetividade do mundo. Dizia ele:"Escrevo para que me escutem
quem? Um ouvido anônimo e amigo perdido na distância do tempo e das idades. Para que me
escutem se morrer agora. E depois, é inútil procurar razões. Sou feito com estes
braços, estas mãos, estes olhos e assim sendo, todo cheio de vozes que só sabem se
exprimir através das vias brancas do papel, só consigo vislumbrar a minha realidade
através da informe projeção deste mundo confuso que me habita. E também porque escrevo
porque me sinto sozinho. Se tudo isto não basta para justificar porque escrevo. o que
basta então para justificar alguma coisa na vida? Prefiro as minhas pequenas às grandes
razões, pois estas últimas quase sempre apenas justificam mistificações
insustentáveis frente a um exame mais detalhado".
Em 1962 teve um derrame cerebral e deixou de escrever. Passou a pintar, chegando a fazer
duas exposições. Faleceu em 1968.
OBRAS:
Maleita (1934); Salgueiro (1935); A Luz no Subsolo (1936); Mãos Vazias (1938); O
Desconhecido (1940); Poesias (1941); Dias Perdidos (1943); Novas Poesias (1944); O
Anfiteatro (1946); Crônica da Casa Assassinada (1959); Diário Completo (1961); O
Viajante (1970).
O texto acima faz parte do romance "Crônica da casa assassinada", editado pela
Nova Fronteira Rio de Janeiro, 1979, pág. 37.
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