Isto aconteceu na Bahia, numa tarde em que eu visitava a mais antiga
e arruinada igreja que encontrei por lá, perdida na última rua do
último bairro. Aproximou-se de mim um padre velhinho, mas tão
velhinho, tão velhinho que mais parecia feito de cinza, de teia, de
bruma, de sopro do que de carne e osso. Aproximou-se e tocou o meu
ombro:
— Vejo que aprecia essas imagens
antigas — sussurrou-me com sua voz débil. E descerrando os lábios
murchos num sorriso amável: - Tenho na sacristia algumas
preciosidades. Quer vê-las?
Solícito e trêmulo foi-me
mostrando os pequenos tesouros da sua igreja: um mural de cores
remotas e tênues como as de um pobre véu esgarçado na distância; uma
Nossa Senhora de mãos carunchadas e grandes olhos cheios de
lágrimas; dois anjos tocheiros que teriam sido esculpidos por
Aleijadinho, pois dele tinham a inconfundível marca nos traços dos
rostos severos e nobres, de narizes já carcomidos... Mostrou-me
todas as raridades, tão velhas e tão gastas quanto ele próprio. Em
seguida, desvanecido com o interesse que demonstrei por tudo,
acompanhou-me cheio de gratidão até a porta.
— Volte sempre —
pediu-me.
— Impossível — eu disse. — Não moro
aqui, mas, em todo o caso, quem sabe um dia... — acrescentei se
nenhuma esperança.
— E então, até logo! — ele murmurou
descerrando os lábios num sorriso que me pareceu melancólico como o
destroço de um naufrágio.
Olhei-o. Sob a luz azulada do
crepúsculo, aquela face branca e transparente era de tamanha
fragilidade, que cheguei a me comover. Até logo?... “Então, adeus!”,
ele deveria ter dito. Eu ia embarcar para o Rio no dia seguinte e
não tinha nenhuma idéia de voltar tão cedo à Bahia. E mesmo que
voltasse, encontraria ainda de pé aquela igrejinha arruinada que
achei por acaso em meio das minhas andanças? E mesmo que desse de
novo com ela, encontraria vivo aquele ser tão velhinho que mais
parecia um antigo morto esquecido de partir?!...
Ouça, leitor: tenho poucas
certezas nesta incerta vida, tão poucas que poderia enumerá-las
nesta breve linha. Porém, uma certeza eu tive naquele instante, a
mais absoluta das certezas: “Jamais o verei.” Apertei-lhe a mão, que
tinha a mesma frialdade seca da morte.
— Até logo! - eu disse cheia de
enternecimento pelo seu ingênuo otimismo.
Afastei-me e de longe ainda o
vi, imóvel no topo da escadaria. A brisa agitava-lhe os cabelos
ralos e murchos como uma chama prestes a extinguir-se. “Então,
adeus!”, pensei comovida ao acenar-lhe pela última vez. “Adeus.”
Nesta mesma noite houve o
clássico jantar de despedida em casa de um casal amigo. E, em meio
de um grupo, eu já me encaminhava para a mesa, quando de repente
alguém tocou o meu ombro, um toque muito leve, mais parecia o roçar
de uma folha seca.
Voltei-me. Diante de mim, o
padre velhinho sorria.
— Boa noite!
Fiquei muda. Ali estava aquele
de quem horas antes eu me despedira para sempre.
— Que coincidência... — balbuciei
afinal. Foi a única banalidade que me ocorreu dizer.— Eu não
esperava vê-lo... tão cedo.
Ele sorria, sorria sempre. E
desta vez achei que aquele sorriso era mais malicioso do que
melancólico. Era como se ele tivesse adivinhado meu pensamento
quando nos despedimos na igreja e agora então, de um certo modo
desafiante, estivesse a divertir-se com a minha surpresa. “Eu não
disse até logo?”, os olhinhos enevoados pareciam perguntar
com ironia.
Durante o jantar ruidoso e
calorento, lembrei-me de Kipling. “Sim, grande e estranho é o mundo.
Mas principalmente estranho...”
Meu vizinho da esquerda quis saber
entre duas garfadas:
— Então a senhora vai mesmo nos deixar
amanhã?
Olhei para a bolsa que tinha no
regaço e dentro da qual já estava minha passagem de volta com a data
do dia seguinte. E sorri para o velhinho lá na ponta da mesa.
— Ah, não sei... Antes eu sabia, mas
agora já não sei.
Texto extraído do livro FIGURAS DO BRASIL 80 AUTORES EM 80
ANOS DE FOLHA, Editora PUBLIFOLHA. FOLHA DE SÃO PAULO pág. 129
E 130.