O amigo norte-americano
Kosztolányi Dezsö
Há seis ou sete anos travei conhecimento com um rapaz norte-americano muito simpático.
Tendo descido de Viena pelo Danúbio em seu barco desmontável, passou ele o verão em
Budapeste. Tinha cabelos louros da cor do mel, dentes alvos, cintilantes, camisa "de
apache", de colarinho aberto. Foi-me apresentado num grupo de amigos. Fez-nos várias
visitas, e nós também fomos vê-lo uma vez. Não me lembro de mais nada a respeito dele.
Depois, foi-se embora. Trocamos cartões de visita e prometemos que escreveríamos um ao
outro. Porém, nenhum de nós escreveu.
Há tempos recebi, de um dos hotéis da cidade, um bilhete escrito por outro
norte-americano que viera também passar uma temporada aqui em companhia da mulher. Há
muitos norte-americanos no mundo. Referindo-se ao meu amigo de cabelos de mel,
perguntou-me quando poderia visitar-nos. Ao mesmo tempo, informou-me de que, de certa
maneira, era parente do outro. Com efeito, o meu amigo se tinha casado no decorrer de
todos aqueles anos e se tinha também divorciado; pois ele, o autor do bilhete, era
cunhado da ex-mulher do meu amigo.
O parentesco pareceu-me um pouco vago. Fosse como fosse, respondi que teríamos o maior
prazer em recebê-los, tanto mais quanta desejávamos ter notícias do nosso amigo, mas no
momento, toda a nossa família estava gravemente gripada. Julguei ter liquidado a assunto
por meio dessa mentira inocente.
Enganara-me. Uma semana depois o norte-americano perguntou-me, noutro bilhete amável, se
estávamos passando melhor. Respondi-lhe, por um bilhete não menos gentil, que estávamos
inteiramente bem, e convidei-os a tomar chá conosco na fim da semana.
Foi quando efetivamente todos nós fomos acometidos de gripe. Alegar doença era
impossível; pareceria mentira deslavada. Mandei, pois, telefonar que tivéramos de viajar
com urgência. Mas, envergonhado, não esperei uma terceira carta. Eu mesmo escrevi
longamente, num tom humilde, como que implorando perdão, rogando que eles mesmos
marcassem o dia e a hora da visita. Para nós qualquer momento servia; fazíamos questão
era de vê-los. Chegou a resposta ansiosamente esperada: vinham visitar-nos domingo, às
seis da tarde.
Por mim, sempre tenha sido cortês com os estrangeiros. Inspiram-me simpatia e, ao mesmo
tempo, compaixão. Ser estrangeiro na país dos outros é como que sofrer de doença
orgânica. Longe da minha pátria, eu mesma sinto-me um aleijado. Vou de um lado para
outro às apalpadelas, não conheço as pessoas, ignoro a cotação das palavras e das
expressões. Aguardava, pois, a visita com sincero arrependimento, ansioso da expiação.
Acontece, porém, que na domingo me encontrei mergulhado no trabalho. Acometera-me uma
verdadeira febre de escrever, e escrevia cada vez mais enlevado. Olhava desesperado para
os ponteiros, que corriam rápidos. À medida que o tempo passava, acabaria dando a vida
para que não se realizasse aquele encontro.
Que podia fazer? A doença, a viagem, já constituíam desculpas esfarrapadas. Passei
algum tempo numa revolta estéril. Por fim, no começo da tarde, tive uma idéia luminosa.
Aqueles bons norte-americanos não me conheciam. Conheciam, isto sim, um conhecido meu, a
quem, aliás, eu mal conhecia. Telefonei, pois, a um velho amigo, engenheiro desempregado,
e pedi-lhe que me substituísse. Primeiro, não queria atender-me. Afinal, ante a promessa
de uma indenização, concordou. Telefonei depois à uma professora de inglês para que,
mediante o dobro do que cobrava por aula, desempenhasse as funções de dona de casa. Ela
aceitou, também.
Os dois chegaram-me à casa às quatro da tarde, coma dois conspiradores. Apresentei-os um
ao outro e expliquei-lhes o papel que lhes cabia desempenhar. De modo geral, tinham de
comportar-se como nós mesmos nos comportaríamos na ocorrência; dizer "sim" a
maioria das vezes, "não" de vez em quando. A respeito do tempo deviam observar
que era bonito, em relação à situação mundial, que era horrível. Haviam de mostrar
às visitas a nosso apartamento, eventualmente os retratos da família. O chá já estava
sendo preparado. Deixei-os.
O êxito da reunião superou toda a expectativa. As visitas ficaram até às nove e meia e
tardaram a ir-se embora. O meu amigo engenheiro recebeu os cumprimentos com grande
modéstia, qualificou a minha atividade de bobagem insignificante, fez entrar as visitas
no meu gabinete (na realidade, foi na sala de jantar, mas isso não fez a menor
diferença), e escutou com um sorriso entre meditativo e saudoso o relatório da vida do
meu amigo de cabelos cor de mel. A professora, por sua vez, desempenhou às mil maravilhas
o papel de esposa ideal, cortando a cada instante a palavra do marido e contradizendo-o a
propósito de tudo.
No dia seguinte o mensageiro do hotel trouxe-nos um lindíssimo ramo de lilases brancos
acompanhado de uma carta. Os americanos, cheios de gratidão, afiançaram-nos que em toda
a sua vida nunca se tinham divertido tanto; por mais que o meu amigo nos tivesse elogiado,
não acreditaram que eu possuísse um espírito tão irresistivelmente encantador e minha
mulher um senso de hospitalidade tão cativante.
O casal voltou à América do Norte, onde contaram ao meu amigo de cabelos cor de mel a
magnífica recepção que tiveram. Ele agradeceu-nos a gentileza numa carta
comovidíssima. Desde então não paramos de nos corresponder, e a nossa amizade está
ficando cada vez mais profunda. Por outro lado, vim a saber que o engenheiro e a
professora deram para encontrar-se com certa freqüência.
A mentira é como um grão de poeira. Eu esperava que se diluísse no ar. Em vez disso,
está-se avolumando cada vez mais. Aguardo os acontecimentos com verdadeira ansiedade.
Kosztolányi Dezsö (Desidério Kosztolányi, 1885-1938), poeta e prosador
húngaro, era um dos escritores mais integrados na literatura européia, sendo conhecido
por seus contos de trama exígua, quase sem acontecimentos, mas de grande profundidade
psicológica e de amplas perspectivas. É autor dos romances "Édes Anna",
"O Papagaio de Outro", "O Poeta Sangrento". O conto acima consta do
livro "Novelas" e foi extraído da antologia "Contos Húngaros", com
tradução, apresentação e notas biográficas de Paulo Rónai e revisão de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, editora Biblioteca Universal Popular (BUP) - Rio de Janeiro,
1964, pág. 65, gentilmente cedido pelo "Rato de Sebo" João Antonio Buehrer
Almeida.
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