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A estupidez da guerra
Jonas Queiroz
Mais de quinhentos mil homens aguardavam o meu discurso. Eu podia ver em suas faces a
insegurança e o medo; outrora eu também devia ter demonstrado a mesma expressão. Já
havia lutado em várias guerras, combatido em diversas batalhas: o Vietnã, a guerra do
Golfo, o quebra-quebra no centro de São Paulo durante a greve dos ônibus, a guerra do
Paraguai, o pau que comeu solto entre as torcidas do Corinthians e do Palmeiras, a briga
entre meu cunhado e meu tio por causa de uma aposta besta, o massacre dos índios Sioux, a
tomada de Constantinopla... O que me credenciava a estar comandando aquele batalhão de
547.213 homens. E um estagiário. Mas o que eu podia dizer àqueles homens aflitos?
"Companheiros, iniciei, é fato que a guerra é inevitável. O conflito iminente se
aproxima, mas a pergunta que não quer calar é uma só: contra quem é esta guerra? Quem
é o inimigo?
Custer me chamou para uma conversa à parte. Para um morto, até que ele estava bem.
Mancava de uma perna, não tinha o braço direito, um olho era vazado e um ouvido, surdo,
mas, para um falecido, estava de bom tamanho.
"Escute, general Ross, eu acho que sei quem é o inimigo.
"Sim, Custer, desembuche, então."
"Bem, pense comigo. Se nós vamos entrar numa guerra contra alguém, este alguém é
nosso inimigo, certo?"
"Certíssimo."
"Então se este oponente é nosso inimigo, nós somos inimigos dele. Portanto, o
inimigo somos nós, confere?"
Eu tive que concordar. 0 raciocínio de Custer era insofismável. Decepei sua cabeça ali
mesmo, para que eu tomasse para mim aquela brilhante dedução. 0 corpo sem cabeça de
Custer saiu andando, quer dizer, mancando. Custer era duro na queda.
"Companheiros! Recebi informações, de fontes fidedignas, que revelam finalmente
quem é o inimigo. O canalha, afinal, resolveu mostrar sua face. O inimigo... somos
nós!"
Todos se entreolharam, aparentemente não se dando conta do perigo que corriam.
"A hora é agora! Meus amigos, meus inimigos... Ataquemo-nos!"
§
Começou-se uma carnificina sem igual. Os soldados atacavam quem quer que estivesse ao seu
lado. Para quem jamais presenciou uma batalha campal, devo dizer que a cena é
horripilante e macabra. Restos mortais jazendo pelo chão, órgãos vitais esparramados
por todos os lados. Tripas, corações, braços, pernas, hipotálamos, rins, bonés da
Disneylândia, cerebelos, metacarpos, bilhetes de loteria, ramos ventriculares anteriores
de artérias interventriculares esquerdas, perucas, fotos autografadas do Mel Gibson,
dedos mindinhos, discos do RPM e coisas tais.
Em frações de segundo, eu tive um branco e pensei na estupidez da guerra, na fragilidade
da vida humana. Como tudo é efêmero e fugaz, meu Deus! Parece que foi ontem que eu
transei pela primeira vez. Mas não foi, foi anteontem. O tempo é uma ampulheta na qual
os grãos de areia caem rápido demais. A vida é igual à rapadura, é doce, mas não é
mole, não! Mas fazer o quê? Ninguém vem ao mundo a passeio. Fora a minha tia Gertrudes,
que ganhou uma grana na loteca e ficou passeando a vida toda.
Ela foi para a Disneylândia umas cinco vezes, tem até uma foto em que ela está
abraçada com o Pluto e o Pateta. Titia aproveitou uma de suas estadias na terra do Mickey
para tentar resolver aquele famoso mistério da humanidade: se o Pateta e o Pluto são,
ambos, cachorros, por que o Pateta anda em pé e fala, e o Pluto anda de quatro e late?
Mas ela não conseguiu nenhuma resposta satisfatória. Como a vida é cheia de mistérios
e milagres, meu Deus! E estamos prestes a acabar com toda a raça humana, capaz de obras
magníficas como as pirâmides do Egito, a torre Eiffel e o Epcot Center! Ah, lembrei-me
de outra coisa: segundo minha tia, lá na Disneylândia não tem graça nenhuma aquela
piada em que a gente diz que o Pluto é filho da Pluta. Aparentemente só tem graça no
Brasil.
Voltemos à guerra. À minha frente surgiu um ninja com uma espada de lâmina ultrafina e
diversos shurikens. Por sorte, eu tinha à mão uma uzi automática israelita, de
largo alcance, pesando quatro quilos, e liquidei o desgraçado.
O conflito agora havia se estendido a todos os países do mundo. China, Canadá,
Bulgária, Estados Unidos, Papua Nova-Guiné, França, Djibuti, Botsuana e outros. Até o
estado do Espírito Santo entrou na guerra, mas ninguém notou. Osama Bin Laden finalmente
saiu de sua toca e atirou um ovo podre em George Bush, que revidou jogando um disco do RPM
no mulá Omar. Eu julgo que a esta altura já eram quarenta bilhões de pessoas envolvidas
no embate. Ah, e um estagiário!
Não tardou e animais se aproveitaram da situação para se vingarem do ser humano.
Esquadras de pombas nos atacavam com petardos bostais. Orangotangos montados em
hipopótamos atiravam bananas em soldados da Jordânia. Chimpanzés se masturbavam e
faziam caretas para combatentes do Sudão. Batalhões de pulgas faziam com que as tropas
de Moçambique batessem em retirada se coçando o tempo todo. Golfinhos distraíam
capitães de navios de guerra, fazendo acrobacias graciosas, enquanto orcas, as baleias
assassinas, afundavam os navios com ataques traiçoeiros.
Era o horror da guerra em toda a sua plenitude. Torcidas de todo o mundo se uniam e
emboscavam jogadores mercenários que eram contratados a peso de ouro, mas que só queriam
saber de sombra e água fresca. Hordas de sogras faziam tocaia para genros imprestáveis
que nunca trocavam rolos de papéis higiênicos e não saíam do bar. Eu cheguei a ver
Marlon Brando subir num palco improvisado e gritar: "O horror! O horror!" Neste
momento, ele foi posto fora de combate pelo Pateta, pois até a Disneylândia havia
entrado no conflito.
Vários tipos de armas eram utilizadas: 38 cano longo bombas atômicas, músicas dos
Engenheiros do Hawaí, bombas químicas, ovo podre, tacapes, discos do RPM, fotos
autografadas do Mel Gibson e até uzis automáticas israelitas, de largo alcance, que
pesavam quatro quilos.
No auge do conflito, entraram ainda seres mutantes,vampiros, presidentes sociólogos e
lobisomens. Eu previ que logo mais não sobraria nada da raça humana.
§
Tentei então um lance ousado. Matei um tuaregue, colei um zap na testa de um caubói e me
apossei do laço deste último. Com o laço, consegui me prender a uma das naves
alienígenas que voavam baixo e logrei chegar até a cabine do piloto.
Era um extraterrestre da categoria 4, amebóide e brilhante, provavelmente oriundo de
Umbriel, um dos satélites de Urano. Dominei-o facilmente com o velho truque do "Olha
lá, uma ameba nua!" e usei a nave para me vingar de todos os que haviam me atacado
antes. Comecei pelas pombas que haviam cagado em cima da minha boina nova. Eu matei elas.
Ou o certo é: eu as matei? Ah, vamos ficar assim: eu as matei elas! Pronto, eu uso as
duas construções, aí não tem jeito de errar. É melhor pecar por excesso do que pecar
por falta, certo?
A guerra já estava agora no final do segundo turno e eu tinha conseguido me classificar
para as oitavas de final. Minha nave foi derrubada antes que eu acionasse o turbo-jato que
me permitia viajar para outra dimensão, e eu me vi frente a frente com meu próximo e
terrível oponente: Joe Laverne.
§
O leitor, se ainda não tombou em combate, deve estar se perguntando: quem é Joe Laverne?
Bem, Joe Laverne é um jovem holandês de cerca de 25 anos. Altura mediana, cabelos e
olhos castanhos, másculo, bronzeado e solteiro, Joe gosta de cavalgar nas férias de
verão e tem a culinária como hobby principal. Sincero, decidido e carinhoso, Joe
não quer mais saber de aventuras e está à procura de sua alma gêmea. A mulher ideal,
para ele, deve ser romântica, verdadeira, companheira e gostar do Brian Adams. De
preferência, ela deve ser evangélica. Joe curte uma discoteca no sábado à noite e
costuma velejar aos domingos; não é ciumento e não se incomodaria se sua namorada
posasse nua para uma revista masculina, "desde que fosse um trabalho artístico, é
claro". Joe raramente bebe, a não ser em eventos especiais. "Por exemplo",
afirma o belo rapaz, "um dia desses, eu fui numa suruba e aí eu tive que me
comportar de acordo com o tipo de evento social, certo? Enchi a cara e catei aí umas
cinco minas e uma ovelha. Joe leu, entendeu e adorou O Pequeno Príncipe, de
Saint-Exupery, e só vai responder cartas que vierem com fotos e uma ajuda de custo de dez
dólares, pois Joe está desempregado no momento.
Eu me vi cara a cara com Joe Laverne. Se eu o matasse, iria para as quartas de final. No
meu coltre esquerdo eu possuía um 38 cano longo com quatro balas. Joe e eu nos encaramos,
olho no olho, e disparamos ao mesmo tempo.
Aí ele matou eu. Ou ele me matou. Ah, digamos que ele me matou eu! Pronto, assim não tem
jeito de errar. Aí eu morri, e não posso contar o resto da história e nem quem ganhou a
guerra, mas desconfio que deve ter sido o Pateta. Vocês me desculpem aí, mas eu morri, o
que é que eu posso fazer?
Jonas Queiroz é, sem dúvida, um novo valor que terá sucesso promissor na
literatura de humor brasileira. Seus textos, impregnados de non-sense, são agradáveis de
serem lidos e trazem sempre críticas e mensagens que são captadas em meio às
gargalhadas por seus leitores. Vejam sua apresentação: "Jonas Queiroz,
nascido em 1977, é um heterônimo de Joshua, nascido em 1965. Um velho desconhecido do
grande público, Joshua não vem se destacando no cenário literário nacional. No
momento, não está empenhado em escrever um nosso romance, "Goiabada de
paixões." São de sua autoria "Em Pago-Pago, garçons gêmeos trazem a conta
duas vezes" (2002) e "Detetives não usam sobretudo nos trópicos" (2003),
Editco Comercial Ltda. - São Paulo. De seu primeiro livro extraímos o texto acima, pág.
203.
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