Último
texto
Meter a língua onde não é
chamado
Joaquim Ferreira dos Santos
(Sugestões de novas palavras antigas para "Mulheres apaixonadas")
Azeite, não é meu parente! Nem todos entendem, mas a língua que se falava antigamente
era tranchã, era não?
As palavras pareciam todas usar galocha, e eu me lembro como ficava cabreiro quando aquela
tetéia da rua, sempre usando tank colegial, se aprochegava com a barra da anágua
aparecendo, vendendo farinha, como se dizia. Só porque tinha me trocado pelo desgramado
que charlava numa baratinha, ela sapecava expressões do tipo conheceu,
papudo?!, Ora, vá lamber sabão, eu devolvia de chofre, com toda a
agressividade da época, deixa de trololó, sua sirigaita.
Era tempo do onça total. As garotas, algumas tão purgantes que pareciam eternamente de
chico, não davam esse mole de escancarar o formato do V-8 sob a saia, e os homens,
tirando uma chinfra, botavam pra jambrar com quedes e outras papas-finas. Eu, hein, Rosa?!
Tanto quanto o telefone preto, a geladeira branca e o sebo para se passar no couro da bola
número 5, essas palavras foram sendo consideradas como as garotas feias de então
buchos. Aconteceu com elas, as palavras, o mesmo que ao Zé Trindade empacotaram,
bateram as botas. Tomaram um cascudo, levaram sopapo, catiripapo, e chisparam do
vocabulário. Uma pena.
A língua mexe, pra frente e pra trás, e assim como o bacana retornou guaribado para
servir de elogio nos tempos modernos, pode ser que breve, na legenda de uma foto da
Daniela Cicarelli, os jornais voltem a fazer como diante da Adalgisa Colombo outrora, e
digam que ela tem it, que ela é linda, um chuchu. São coisas do arco da velha, vai
entender?! Não é só o mistério da ossada da Dana de Teffé que nos une ao passado.
Não saberemos nunca, também, quem matou o mequetrefe, a pinimba, o tomar tenência e o
neca de pitibiribas, essas delícias vocabulares que enxotadas pelo bom gosto gramatical
picaram a mula e foram dormitar, como ursos no inverno, numa página escondida do
dicionário.
Outro dia eu disse para as minhas filhas que o telefone estava escangalhado. Morreram de
rir com esse maiô Catalina que botei na frase. Nada escangalha mais, no máximo não
funciona. Me acharam, sem usar tamanho e tão cansativo polissílabo, um completo
mocorongo. Como sempre, estavam certas. Eu tenho visto mulheres de botox, homens que
escondem a idade, tenho visto todas as formas de burlar a passagem do tempo, mas o que sai
da boca tem data. Cuidado cinqüentões com o ato falho de pedir um ferro de engomar,
achar tudo chinfrim, reclamar do galalau que senta na sua frente no cinema e a mania de
dizer que a fila do banco está morrinha. Esse papo, por mais que você curta música
techno e endívias, denuncia de que década você veio.
Acho legal que a Sonia Braga volte, curto às pamparras a Emilinha vendendo CD na praça.
Mas por que não dar uma linguada no passado? Sem querer amolar, sem bololô, sem querer
fazer arte, sem querer, em tempos já tão complicados, trazer mais angu de caroço para a
vida das pessoas, eu torço, quer dizer, tenho a maior queda por um revival lingüístico.
As mães costumavam passar sabão na língua do ranheta que falava palavrões. De vez em
quando, todos sofremos essa limpeza e perdemos palavrinhas tão gostosas quanto aquele
mingau de maisena com uma banana caramelada no meio. Será o Benedito?! Ninguém merece,
tá ligado?
Da mesma maneira que se foi, parece que para sempre, o cresceu a barba como sinônimo de
passar vergonha, às vezes dá-se a ressurreição de uma dessas espoletas estabanadas.
Eram palavrinhas catitas, todas do tempo em que as moças ficavam incomodadas mas não
dormiam de touca. O borogodó, por exemplo, que andei saudando aqui semanas atrás como um
mantra de felicidade solar por causa de seus redondos abertos e femininos, ganhou novo
sopro de vida ao ser repetida em todos os capítulos de Mulheres apaixonadas.
É a coqueluche semântica do momento. E, qual é o pó?!, por que não seria?! Se a bossa
nova voltou, se a boca-de-sino também, por que não a moda da língua retrô? Manoel
Carlos, que é meu chapa, poderia fazer o mesmo com songamonga. Cabe muito bem, seria
batata!, na sonsa da Paloma Duarte. Ô mulherzinha pra gostar de um bafafá!
Essas palavrinhas das antigas, verdadeiros pitéus sonoros, podiam formar o MSL, Movimento
das Sem-Língua, e exigir assentamento no papo do dia-a-dia ao lado de pamonhas,
patas-chocas lamentáveis, como disponibilizar, fidelizar, maximizar e outras gaiatas que
andam fazendo uma interface lambisgóia, totalmente lengalenga, na fala cotidiana. Ficaria
um mix contemporâneo, como se diz.
Uma língua bem exercida é metida, jamais galinha morta. É feita de avanços e recuos, e
se isso parece reclame de algum programa do canal a cabo Sexy Hot, digamos que, sim, pode
ser. Língua, seja qual for, é erótica. Dá prazer brincar com ela. Uma lambida no
passado envernizaria novamente palavras que estavam lá, macambúzias e abandonadas, como
quizumba, alaúza e jururu, expressões da pá virada como na maciota,
onde é que nós estamos! e ir para a cucuia. Certamente, por mais
cara de emplastro Sabiá que tenham, elas dariam na verdade uma viagrada numa língua que
tem sido sacudida apenas pelo que é acessado do cibercafé e o demorô dos manos e das
minas.
Meter a língua onde não é chamado pode ser divertido. Lembro de Oscarito passando a
mão na barriga depois de botar pra dentro uma feijoada completa e dizer, todo preguiçoso
e feliz, tô com uma idiossincrasia!. Estava com o bucho cheio, empanturrado
de palavras gordas, compridas e nonsenses como um paio de porco. É o banquete que eu
sugiro. Troque essa dieta de alface americana, de palavras transgênicas, que anda na moda
mas não vale um caracol. Caia de boca num sarrabulho com assistência na porta, um pifão
de tirar uma pestana do caramba, uma carraspana batuta. Essa idiossincrasia vai fazer
sentido. Se alguém, depois de receber todas essas palavras de lambuja, repetir a mamãe
das antigas e, amuado, gritar dobre a língua, não se faça de rogado
estique.
Joaquim Ferreira dos Santos (1951), escritor e jornalista, nasceu no Rio de
Janeiro (RJ). Trabalhou como repórter, crítico de música e show na revista
"Veja" durante mais de 10 anos. Foi editor das revistas "Domingo" e
"Programa", do "Jornal do Brasil". Em 1991 foi editor executivo do
jornal "O Dia". Atualmente é cronista e colunista do jornal "O
Globo".
Alguns de seus livros já publicados: "Feliz 1958! O ano que não devia
terminar", "O que as mulheres procuram na bolsa", "Em
busca do borogodó perdido", "Seja feliz e faça os outros felizes", e
"O que as mulheres procuram na bolsa". Na coleção "Perfis do Rio",
foi o autor de "Antônio Maria Noites de Copacabana", além de ter
organizado "Benditas sejam as moças As crônicas de Antônio Maria",
"O diário de Antônio Maria" e "Um homem chamado Maria".
O texto acima, escrito durante a apresentação da novela "Mulheres
apaixonadas", de Manoel Carlos, foi publicada no jornal "O Globo" de
08/09/2003, no 2º Caderno.
|