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Garrafas e Mulheres
José Antonio Pinheiro Machado
A verdade é que, na noite da virada, em 31 e dezembro,
seja o ano que for, o champanhe, que geralmente não é champagne,
mas sim espumante, é sempre o rei da festa. Por mais simples que
seja a mesa, por mais barato que seja o espumante, a solenidade é
semelhante, e o brinde, mesmo num copo que abrigou no passado um
glorioso requeijão, tem a mesma emoção.
Felizmente, está acabando o abuso brasileiro de chamar qualquer
vinho espumante de champanhe. Por convenção internacional, que só
não era respeitada aqui, podem usar o nome de champanhe apenas os
vinhos espumantes produzidos na região demarcada de Champagne, na
França. O Brasil começa a levar a sério esses acordos mundiais.
Seria tolice agir diferente: o nosso espumante é de boa qualidade,
não precisa carregar, impresso no rótulo, a cruz de ser um arremedo
ilegal do verdadeiro champanhe.
O
champanhe foi a parte francesa de um outro acordo internacional,
celebrado no lugar mais sério onde se pode fazer qualquer acordo: a
mesa de um bar. Franceses e ingleses, desde sempre, tiveram
rivalidades, e, nessa mesa de bar do tal acordo, estavam sentados um
francês e um inglês, antigos e fraternos amigos. O francês bebia
champanhe, o inglês bebia uma daquelas cervejas escuras que
construíram a glória eterna do Império Britânico. Aproximava-se a
meia-noite de um remoto 31 de dezembro de muitas décadas atrás.
Então, deu-se o fato. Um dos dois convivas (terá sido o inglês, com
as culpas seculares do colonialismo?... Terá sido o francês, com
algum remorso tardio da Guerra da Argélia?) teve a idéia de fazer um
brinde pela paz, prontamente aceita pelo outro. Pediram dois cálices
e surgiu então um belo coquetel feito com metade champanhe francês e
metade cerveja preta inglesa. Pela consistência e pela cor, foi
batizado de Black Velvet (Veludo Negro) e serviu como gesto
de paz entre franceses e ingleses. É claro que aqui se pode fazer
muito bem a versão nacional desse coquetel, misturando um bom
espumante da Serra Gaúcha e alguma digna cerveja preta nacional. O
inglês e o francês que criaram o coquetel original, com certeza, não
se envergonhariam dessa versão brasileira.
E já
que misturamos cerveja e champanhe, uma dica elegante e econômica
para os brindes das festas após ano-novo, festas que, na cidade ou
na praia, só terminam em março: use uma flute— aquele cálice
alto de champanhe — para beber a cervejinha estupidamente gelada.
Além do toque de classe, tem a virtude prática: com menos quantidade
no cálice, a cerveja não tem tempo de esquentar. Com cerveja, com
espumante ou com o legítimo champanhe, não esqueça do ensinamento da
Jó Saldanha: o brinde se faz com o copo na mão esquerda, e os olhos
nos olhos.
E os
vinhos? Branco ou tinto? Há livros imensos, em todas as línguas,
sobre as combinações corretas entre comidas e vinho, com severas
advertências sobre o dever dos tintos de acompanharem as carnes
vermelhas e a vocação dos vinhos brancos de enfrentarem aves e
peixes. Nenhum desses livros consegue calar a voz do coração.
Esqueça as regras e vá pela sua vontade: escolha primeiro o vinho e
depois a comida. Afinal, um vinho leva anos para ficar pronto, e a
comida se prepara em poucos minutos. Uma regra útil, na hora de
beber, é pegar o cálice pela haste, para não alterar a temperatura
com o calor das mãos. E a garrafa? Como é que se pega uma garrafa
para servir um vinho? Segundo o grande escritor inglês Somerset
Maugham, garrafas a gente pega pelo gargalo. Mulheres é que se pega
pela cintura.
O texto acima foi extraído do livro "Na mesa ninguém envelhece",
Editora L&PM - Porto Alegre, 2004, pág. 86.
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