
Saudades da Vila
Por Edla van Steen
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Quando nos conhecemos Heitor era mais alto do que eu uns dez centímetros. Tínhamos
mudado recentemente para a mesma vila e as casas da rua do Ouro foram no início iguais:
sobrados geminados com pequeno jardim na frente, onde minha mãe esforçava-se para manter
vivos vários pés de hortênsias. Depois, aos poucos, as moradias iam sendo
individualizadas por cores diferentes.
Vivíamos mais na calçada do que dentro de casa e, dependendo do horário, sabíamos quem
estava à nossa espera, no meio-fio. O que era muito gostoso. Vistos de cima, de algum,
prédio, devíamos compor uma estranha mancha parada, ao lado de todos aqueles pontos
irrequietos, nossos inúmeros irmãos a andar de bicicleta ou a jogar bola. Formávamos um
grupo de seis pessoas da rua e algumas avulsas da vizinhança. Os começos de noite eram
os melhores momentos, a conversa espichada até o instante supremo em que exigiam o nosso
recolhimento.
O mundo se resumia, para mim, naquele local. Eu me sentia parte integrante dele, um
paralelepípedo, um canteiro ou coisa no gênero. Não me importava de dividir o quarto
com a vovó, os manos menores no outro, meus pais no terceiro, nem com a fila diária para
usar o banheiro, único.
Minha melhor amiga chamava-se Neide. Morava na casa cinco, em frente à nossa, se bem que
fosse difícil uma definição sobre isso, tanto atravessávamos a rua por dia. Era a
confidente, a colega de classe, a conselheira: usávamos idêntico tipo de roupa, uma
emprestando para a outra, e gostávamos das músicas dos Beatles, que ouvíamos em noites
chuvosas na casa do Heitor, pois o pai dele trabalhava como gerente de um restaurante.
Aos domingos íamos a matinê no cine Ópera, nas redondezas. As meninas sentavam-se logo,
bem na frente, mas os garotos davam, muitas voltas pelos corredores. Era um cinema
pequeno, com as cadeiras de madeira repletas de inscrições feitas a canivete, a chave,
ou sei lá a quê. Anualmente, o proprietário mandava lixar e envernizar tudo. Uma pena,
perdia-se a distração da leitura. A medida que a gente crescia, sentava, ou melhor,
deitava mais para trás. Nas cadeiras daquele cinema Heitor pegou na minha mão pela
primeira vez. Ali nos tornamos os primeiros namorados do grupo, que depois foi aumentando
em número de casais, Neide e Ozório, Isabel e João, assim por diante.
Até que meu pai chegou com a terrível notícia: íamos embora da cidade porque ele fora
promovido e devia ficar um ano no interior, tomando conta de uma filial da firma. Chorei,
bati o pé, fiz o diabo. A situação era irreversível. Antes que eu completasse quatorze
anos, as despedidas da vila e da turma foram feitas em meio à imensa tristeza. Não
adiantavam as promessas de retorno nas férias que, afinal, jamais aconteceriam, nem a
certeza da transitoriedade da mudança. "Doze meses passam rápido"
mamãe argumentava talvez querendo convencer-se a si própria, pois ela igualmente
sofria com a viagem. Perderia o joguinho das quintas-feiras na vizinha e toda aquela
série de hábitos adquiridos como a costureira Anália, o verdureiro da esquina,
que pendurava as compras, a feira, detalhes imprescindíveis para o seu sossego de
dona-de-casa.
Porém exclamou entusiasmada diante da futura moradia: maior, bem localizada, um espaçoso
quintal com duas jabuticabeiras enormes. Estivesse o bando por perto, seria perfeita. Sem
eles de que valia tanto luxo? Ganhei, inclusive, um quarto só para mim, móveis
novos e uma vitrola. E continuava desconsolada, escrevendo sem parar. Heitor respondia
jurando sentir 1ninha falta, paixão eterna etc. Com o tempo a correspondência diminuiu,
parou completamente. Nem a Neide mandava notícias. O consolo era freqüentar o clube, que
acabou por me inscrever no concurso de miss. Confesso que aceitei a disputa esperançosa
de ganhar para as finais: teria chance de visitar a vila. Papai prosperava no interior e
não falava em voltar. Nem mamãe, que dava incrível valor à melhora do nosso padrão
social.
Perdi a eleição por injustiça do júri e, com ela, a oportunidade de rever meus
queridos amigos. Papai comprou a filial da firma e estava feliz da vida quando morreu, de
enfarte. Aí, mamãe e eu fomos trabalhar na loja. A família nunca mudaria de lá.
A imagem da vila foi se apagando, eu não conseguia ver na memória os rostos da turma.
Restava apenas a impressão da perda de algo essencial, não modificada pelos inúmeros
namorados, nem pelos amigos atuais.
Então, ao completar vinte e cinco anos, pedi de presente umas férias para rever a vila
e, em especial,
Heitor.
Preparei um guarda-roupa como se fosse para a Europa, tamanho o capricho, antegozando o
efeito que eu causaria com meu um metro e setenta de altura.
Ansiosa, distraída, cheia de ternura, peguei sozinha a estrada que me levaria ao
romântico encontro.
Primeiro iria à vila ou à casa da titia? O certo é que com aquele nervosismo, devia
parar de fazer planos e prestar o dobro de atenção ao trânsito, do contrário
estragaria meu lindo carrinho novo.
Bem, cheguei atrasada: aos sábados as estradas são intransitáveis. Tia Aurora não
cabia em si de contentamento. Sair? De jeito nenhum. Espere o Evandro. Ele vai ficar bobo.
Enquanto meu primo não entrasse pela porta a dentro, eu não podia arredar dali. Ele
demorou à beça, terminei dormindo no sofá da sala.
Na manhã seguinte levantei cedo, animadíssima. Deixei um bilhete no qual prometia vir
para jantar. Queria o dia inteiro livre. Comprei flores para a Neide, sonhos-de-valsa para
o Heitor e estacionei o carro longe, para que ninguém visse. Fui andando em direção à
rua do Ouro, bastante decadente, diga-se de passagem, as casas inacreditavelmente sujas,
quase em ruínas. A nossa, estava tão encardida que doía. Das hortênsias, nem
vestígios. E a da Neide acompanhava o resto. Senti um aperto no coração, juro. O
cenário era mesmo deprimente. (Mal sabia eu o que ainda me esperava!)
Neide me recebeu com um grito de
satisfação. Levei um susto quando me empurrou, sem delicadeza, para o sofá. Ela devia
estar pesando mais de cem quilos, pensei horrorizada. Entreguei o maço de flores
aparentando a maior naturalidade, como se não tivesse reparado na gordura. Neide
agradeceu e apertou minha mão com força. Bufando, pelo esforço de se levantar,
dirigiu-se para a cozinha. Como era possível que ela, magrinha daquele jeito, se
transformasse tanto? Voltou com um vaso onde pusera o maço sem soltar o cordão que
amarrava os talos. Horrível. E o pessoal? perguntei. Dormindo, jogaram buraco até
altas horas. Quer que acorde eles? Insisti que não, a visitinha era rápida, não valia a
pena e ainda desejava rever o resto dos amigos. Neide contou, rindo: Ozório fugiu de casa
há muito tempo e sumiu no mundo; Isabel casou com um argentino, João é tenente do
exército, vem raramente à vila. E Heitor? arrisquei. Está por aí. Ele vai adorar
ver você. Sempre diz que foi a grande paixão da vida dele e, se alguém duvida, mostra a
quantidade de cartas que recebeu sacudiu o corpo, maliciosamente. O que era pouco
delicado: ninguém merecia conhecer as besteiras que eu, na fossa, tinha escrito. Fiz mais
algumas perguntas enquanto ela servia pudim de chocolate, àquela hora da manhã, credo.
De repente, percebi: a amiga, que eu tanto queria encontrar, desaparecera. Mantinha o
rosto aberto, o ar de franqueza, mas uma certa ironia ou amargura, não sei, tolhia
qualquer aproximação. Éramos duas desconhecidas, essa é a verdade. Dali a pouco me
retirei, ouvindo Neide pedir que voltasse uma tarde dessas para um papo comprido. Dei um
adeusinho, do meio da rua. Venho sim.
Fosse mais intuitiva, não teria ido bater à casa de Heitor, bem cuidada, aliás. A
fachada exibia, agora, porta e janelas coloniais. Um leão branco, de louça, sorria para
mim, na entrada, e uma trepadeira esquisita, que eu não conhecia, subia pelas paredes
ocres. Se eu tivesse compreendido a tempo todas aquelas alterações em Neide e na vila,
nos onze anos de ausência, é possível que desistisse de outras curiosidades. Mas,
naquele momento, não possuía nada de bom-senso. Ninguém provocava em mim o afeto e o
carinho sentidos por Heitor. Natural, portanto, que eu apertasse a campainha. Um garoto
passou correndo e berrando, os fundilhos rasgados. Em algum lugar, Sílvio Santos cantava
com o auditório um daqueles horrendos anúncios. Onde estaria Heitor? A velha, sentada
num banquinho, na calçada, fez sinal para que eu insistisse. Toquei a campainha pela
terceira vez. Alguém abriu a porta. Tive que sufocar um grito de horror. Aquilo era
demais para a minha estrutura emocional. Vou descrever exatamente o que vi antes de
entender quem era a figura grotesca que me atendeu: vi um homem muito baixo, de um metro e
cinqüenta mais ou menos, de robe de seda vermelha, sapatos de salto alto prateados e de
batom nos lábios. O Heitor está? a frase escapou quando nos reconhecíamos, quase
que instantaneamente. Marina, que surpresa, entre! Desculpe os trajes. Fique à vontade
falei, pálida, uma taquicardia insuportável. Estou fazendo café, ele disse, quer
um? Aceitei e ouvi o som do salto ploc ploc se afastando. O que significava tudo aquilo?
Tive a impressão de ouvir cochichos e depois passos furtivos, de alguém se escondendo.
Heitor me ofereceu a xícara e sentou-se
cruzando as pernas. O batom havia desaparecido. Confesso que de todas as novidades a que
mais me intrigou foi a altura dele. Não alcançaria os meus ombros com salto e tudo. Como
podia ter parado de crescer? Anormal eu que espichei tanto ou ele, que estacionou.
Comecei a falar sem descanso. Heitor fazia gestos absolutamente teatrais: ora levantava o
braço e apoiava-se na cabeça, ora esticava-o em direção à janela e, ficando de perfil
para mim, admirava as unhas, ou então, cruzava e descruzava as pernas, movimentando o
corpo como se estivesse posando para alguma fotografia. Contei minúcias da família, da
cidade, da loja, evitando formular qualquer questão que provocasse confidências.
O telefone tocou e ele atendeu, de pé. Aguardei, olhos no chão, que terminasse a
conversa. Eu me sentia tão cansada. Alguns minutos de trégua foram importantes para que
entendesse toda a minha decepção. Estava a ponto de arrebentar de choro.
Daí me ocorreu fugir. Chorar, não! bati a porta com violência. Para mim, chega.
Ao procurar a chave do carro na bolsa, notei que ainda guardava comigo os sonhos-de-valsa.
O texto acima foi publicado em "Antes do amanhecer" e extraído do livro
"Melhores Contos de Edla van Steen", seleção e prefácio de Antônio Carlos
Seccin, Global Editora São Paulo, 2006, pág. 253.
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