

No oitavo dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que
importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares de
edifícios; que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher
ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho?
Entretanto a cidade, que durante uns dois
ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar. O telefone
tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar; e assim
três, quatro vezes sucessivas.
Alguém vinha e apertava a campainha;
esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos
dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua,
para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante.
Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que
tonteia, como se meus cabelos já tivessem o cheiro de seus cabelos, se o cheiro de sua
pele tivesse entrado na minha. Nossos corpos tinham chegado a um entendimento que era
além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez, que,
sentado, de frente para a janela por onde se filtrava um eco pálido de luz, eu a
contemplava tão pura e nua, ela disse: "Meu Deus, seus olhos estão
esverdeando":
Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz,
nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que
um movimento chamasse outro: inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo
imperceptível, como um lento bailado.
Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também
minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me
lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam?
Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol
extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti
vagamente que aquecia meus sapatos. Fiquei um instante parado, encostado à parede,
olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam;
tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago.
Havia um grande caminhão vendendo uvas,
pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos. O homem fez um grande embrulho de jornal;
voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um
desconhecido, para compreender que o milagre acabara; alguém viera e batera à porta, e
ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo o recibo
de uma carta registrada, e quando o telefone bateu foi preciso atender, e nosso mundo foi
invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre senti que ela me disse isso
num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo
não os via assim, em plena luz), um olhar de apelo e de tristeza onde entretanto ainda
havia uma inútil, resignada esperança.
Texto extraído do livro "Figuras do Brasil
80 autores em 80 anos de Folha", Publifolha SP, 2001, pág. 132.
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