A vitrola esta, tão velha que o melhor é
deixá-la ai mesmo, entregue aos cuidados ou ao desespero do futuro inquilino. Tanto você
quanto eu haveremos de ter, mais cedo ou mais tarde, as nossas respectivas vitrolas, mais
modernas, dotadas de todos os requisitos técnicos e mais aquilo que faltou ao nosso amor:
alta-fidelidade.
Quanto aos discos, obedecerão às nossas preferências. Você fica com as
valsas, as canções francesas, um ou outro "chopinzinho", o Mozart e Bing
Crosby. Deixe para mim o canto pungente do negro Armstrong, os sambas antigos e estes
chorinhos. Aqueles que compartilhavam do nosso gosto comum serão quebrados e jogados no
lixo. É justo e honesto.
Os livros são todos seus, salvo um ou outro com dedicatória. Não, não
estou querendo ser magnânimo. Pelo contrario: Ainda desta vez penso em mim. Será um
prazer voltar a juntá-los, um por um, em tardes de folga, visitando livrarias. Aos poucos
irei refazendo toda esta biblioteca, então com um caráter mais pessoal. Fique com os
livros todos, portanto. E conseqüentemente com a estante também.
Os quadros também são seus, e mais esses vasinhos de plantas. Levarei
comigo o cinzeirinho verde. Ele já era meu muito antes de nos conhecermos. Também os
dois chinesinhos de marfim e esta espátula. Veja só o que está escrito nela: 12-1-48.
Fique com toda essa quinquilharia acidentalmente juntada. Sempre detestei bibelôs e, mais
do que eles, a chamada arte popular, principalmente quando ela se resume nesses
bonequinhos de barro. Com exceção,o de pote de melado e moringa de água, nada que foi
feito com barro presta. Nem o homem.
Rasgaremos todas as fotografias, todas as cartas, todas as
lembranças passíveis de serem destruídas. Programas de teatros, álbuns de viagens, souvenirs.
Que não reste nada daquilo que nos é absolutamente pessoal e que não possa ser entre
nos dividido.
Fique com a poltrona, seus discos, todos os livros, os quadros, esta
jarra. Eu ficarei com estes objetos, um ou outro móvel. Tudo está razoavelmente
dividido. Leve a sua tristeza, eu guardarei a minha.
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) A casa demolida Editora do Autor, Rio
de Janeiro, 1968, pág. 201.