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Supermãe
Hélio Pellegrino
Mário de Andrade, em seu livro A Costela do Grão Cão, tem um poema que começa
assim: Existirem mães, /Isso é um caso sério. /Afirmam que a mãe /Atrapalha
tudo, /É fato, ela prende /Os erros da gente, /E era bem melhor /Não existir mãe.
O poema segue, por aí afora, numa ascendente espiral de beleza, até a inigualável
explosão final: Oh virgens, perdei-vos, /Pra terdes direito /A essa virgindade /Que
só as mães têm!
Rubem Braga, numa crônica deliciosa de O Homem Rouco, dedicada ao Dia das Mães,
conta a história de uma Mãe que, de repente, na praia, dá por falta do filho.
Catastrófica, amputada, a Mãe hasteia o seu supergrito de desespero e horror: todo o
mundo, siderado, põe-se a procurar o afogado, em rebuliço, em pânico, em convulsões e
preces, até que o Joãozinho aparece lampeiro, com um sorvete na mão. A Mãe, com um
tapa, quase derruba sorvete e filho "menino desgraçado!" , e a
este, trombudo, humilhado, só resta o recurso de murmurar, entre dentes: "Mãe é
chaata...".
Otto Lara Resende, num conto chamado Mater
Dolorosa, narra a desventura de um menino progressivamente asfixiado pela longa
e incurável doença da mãe. O sofrimento materno, à semelhança de um miasma em
expansão, passou a impregnar todo o espaço doméstico, invadindo as salas, os móveis, o
porão, o quintal, as gaiolas de passarinhos, e tudo o mais que existisse na casa. O
menino, as criações,as próprias plantas começaram a morrer, confinados |
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e apáticos, até que a morte da mater
dolorosa, num cruel paradoxo, lhes trouxesse de novo o sol, a vida e a liberdade. |
Mãe será chata mesmo? Parece que, por um lado, os
depoimentos neste sentido convergem, numa quase unanimidade afirmativa. O próprio
Ziraldo, em bilhete a mim enviado, a propósito de sua personagem, a Supermãe, dá a
respeito um testemunho saboroso. Diz ele: Na província; nós fomos criados jogando
bola na rua e voltando pra casa, pra lavar os pés e dormir. Mãe era uma coisa boa e meio
distante. Cheguei aqui, e era um tal de fazer amigo que tinha que voltar pra casa, por
causa da mãe, que eu fiquei besta. Cunhei até uma frase para um deles: A mãe é o
maior inimigo do homem´".
O Ziraldo, como bom mineiro, não se compromete. Fala da mãe dos outros e das supermães
alheias, no que, aliás, obra bem. De qualquer forma, a frase dele é uma jóia de humor e
de intuição psicológica. Mãe é coisa de tal forma portentosa, e de tão subida
força, que um pouco é preciso denegri-la, pichá-la, para poder perdê-la. O curioso e
dramático, na dialética da relação mãe-filho, é que o filho, para poder ganhar-se,
enquanto sujeito humano autônomo, dono do próprio nariz, precisa criar uma distância
respeitável, que o separe da mãe. Isto significa que o filho, para ter a mãe,
saudavelmente, necessita perdê-la. O mesmo ocorre com a figura materna, na sua relação
com o filho. Ter o filho, enquanto pessoa, centrado na própria liberdade, é abrir mão
dele, é consentir na sua existência, como inventor de caminhos.
Mãe e filho se perdem para ganhar-se, e se ganham perdendo-se. É esta a contradição
geradora da inevitável ambivalência que caracteriza a relação de mãe e filho, nos
dois sentidos. Há um luto e uma perda a elaborar, no diálogo entre ambos. Há o tempo
que passa, e a nostalgia incurável que dele roreja pois o tempo não volta nunca.
Há, por fim, um progressivo e doloroso reconhecimento de imperfeições, perdas e danos:
a mãe,. com o tempo, se torna menor, na medida que o filho cresce, até que mãe e filho
passam a ser do mesmo tamanho ambos se tornam maiores.
O velho Freud, que não me deixa mentir, tem por um lado uma visão idílica e isto
nele é raríssimo da relação da mãe com o filho. Trata-se do único vínculo de
amor em que o desprendimento, a generosidade e o altruísmo constituem a tônica da
relação. Mas, por outro lado, o criador da psicanálise, com a sua cerrada e
sábia mania de referir tudo e todas as coisas aos componentes da sexualidade,
afirma que o filho, para a mulher, é o ressarcimento, ou a indenização, por ela
exigidos, em virtude do fato de lhe faltar o pênis. Pela maternidade, a mulher consegue
superar a invidia penis, fonte para ela segundo o supracitado Freud de
mortificantes sentimentos de inferioridade. O filho, inconscientemente, para a mãe, pode
vir a representar a insígnia fálica que lhe falta. Ele será, então, pedaço e
brinquedo narcísico da mãe, coisa e loisa dela, propriedade privada e inalienável, sem
direito a uma vida própria.
Eis aí, a meu ver, o substrato psicológico a partir do qual a mãe viria a
transformar-se em supermãe. Ziraldo, cartunista de gênio, conseguiu apreender a
essência do problema, através do seu traço e das situações, universais,e cotidianas,
fixadas pela personagem que criou. E espantoso como o artista, pela graça do seu talento,
chega a resultados que o cientista só alcança depois de longa e porfiada
capina. Supermãe, como o mostra Ziraldo, é mãe demais, dominadora e engolfadora,
cuidadosa e fervorosa a ponto de transformar o filho num permanente afogado, do qual ela
representa a salvação ou o salva-vidas. Acontece, porém, que a supermãe, ao
mesmo tempo que é salvação e salva-vidas, é também o oceano, o báratro profundo,
mundão de água onde o filho submerge, por contraditório decreto daquela que o deu à
luz.
É isso aí: a supermãe dá o filho à luz, isto é, ao pai, ao mundo, à cultura, aos
outros e, ao mesmo tempo, quer reabsorvê-lo, aspirá-lo, reintegrá-lo na noite do seu
ventre. A supermãe, na verdade, é servidora da noite, rainha da escuridão, e trabalha
no sentido de uma dissolução das diferenças. Ela aspira à unidade, à fusão, ao
esplendor espesso e escuro do que é completo e silencioso esfinge de pedra.
Acontece que a supermãe, além do mais, corresponde ao mais profundo sonho que o
coração humano é capaz de sonhar. Ou melhor: a supermãe corresponde ao desejo de um
sono sem sonhos, onde possamos nos perder sem sequer termos notícia de que estamos
perdidos. Neste sentido, a supermãe, do ponto de vista psicanalítico, representa em nós
a pulsão de morte, a tentação que temos de abdicar de nós mesmos, num naufrágio que
nos dissolva no grande oceano cósmico: É doce morrer no mar.
Nascemos prematurados, desequipados, numa inermidade enorme. Costumo dizer que o ser
humano tem sempre mãe de menos, na medida que, ao ser dado à luz da realidade, não tem
condições de suportá-la. A criança, nos seus primeiros tempos de vida, veste-se de
mãe, cria para si, na fantasia, um agasalho de carne, onde se refugia - como num útero.
Ela fica, desta forma, fundida à mãe à supermãe! , totalmente
identificada a ela, num sono e num sonho em que recupera o paraíso perdido: e que
tudo o mais vá para o inferno .
É assim, a partir desses primórdios, que nos acumpliciamos com a supermãe. No
princípio, a exigimos, por questão de sobrevivência. Depois, não sabemos abrir mão
dela. Por fim, não queremos abrir mão dela. Fruto do desejo da mãe e do filho, a
supermãe é criação a dois, exclusiva e excludente. Haja pai, haja terceiro, haja luz e
Logos, para resolver a parada.
Do contrário, estaremos fritos.
Este é o prefácio escrito por Hélio Pellegrino para o livro The
Supermãe, de autoria de Ziraldo, publicado pela Abril S.A. São
Paulo, 1981, pág. 4, apresentando o melhor dos 10 anos das superaventuras vividas pela
Supermãe na Revista Cláudia.
Leiam dois dos textos citados pelo autor:
Mãe, de Rubem Braga
Mater dolorosa, de Otto Lara Resende
Hélio Pellegrino: tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".
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