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O
caboclo, o padre e o estudante
Colhido no Ceará por
Gustavo Barroso
Um estudante e um padre viajavam pelo sertão, tendo como bagageiro
um caboclo. Deram-lhes numa casa um pequeno queijo de cabra. Não
sabendo como dividi-lo, mesmo porque chegaria um pequenino pedaço
para cada um, o padre resolveu que todos dormissem e o queijo seria
daquele que tivesse, durante a noite, o sonho mais bonito, pensando
engabelar todos com os seus recursos oratórios. Todos aceitaram e
foram dormir. À noite, o caboclo acordou, foi ao queijo e comeu-o.
Pela manhã, os três sentaram à mesa para tomar café e cada qual teve
de contar o seu sonho. O frade disse ter sonhado com a escada de
Jacob e descreveu-a brilhantemente. Por ela, ele subia triunfalmente
para o céu. O estudante, então, narrou que sonhara já dentro do céu
à espera do padre que subia, O caboclo sorriu e falou:
— Eu sonhei que via seu padre subindo a escada e seu doutor lá
dentro do céu, rodeado de amigos. Eu ficava na terra e gritava:
— Seu doutor, seu padre, o queijo! Vosmincês esqueceram o queijo.
Então, vosmincês respondiam de longe, do céu:
— Come o queijo, caboclo! Come o queijo, caboclo! Nós estamos no
céu, não queremos queijo.
O sonho foi tão forte que eu pensei que era verdade, levantei-me,
enquanto vosmincês dormiam, e comi o queijo...
Nota — Publicamos na “Revista do Brasil” (Jesus Christo no
Sertão, n 79, julho de 1922, S. Paulo) uma variante em que aparecem
Jesus Cristo, S. Pedro e Judas. Antônio Torres (Prós & Contra)
registrara a versão de Minas Gerais, com um Jesuíta, um Dominicano e
um Capuchinho, o conto é oriental e já fora incluído no secular
livro árabe Nushetol Udeba, entre um cristão, um maometano e um
judeu. Divulgou-se na Europa através do Disciplina Clericalis, fins
do século XI ou princípios do XII, reunião de contos e apólogos
morais, coordenados pelo judeu converso Pedro Afonso, com dois
burgueses e um camponês. No século XVI, Giraldi Cintio incluiu o
episódio no seu Eccatomiti, dizendo-o ocorrido em Roma, no ano de
1527, sendo os personagens um filósofo, um astrólogo e um soldado. A
tradição popular encarna infalivelmente os vitoriosos do amor e da
fortuna nos pobres, nos humildes, nos desprotegidos. Está nisto a
suprema ironia e a suprema bondade do Folclore. É o Mt. 1926 de
Aarne-Thompson, Dream Bread. O resumo de Antti Aarne diz que três
peregrinos combinaram que o último pão fosse comido por quem tivesse
o mais lindo sonho. Um dos peregrinos comeu o pão e disse ter
sonhado com a morte dos dois companheiros, FFC. 74, pág. 189. No
recente A Treasury of American Folklore, de B. A. Botking, New York,
1944, 452, The Three Dreams se passa entre dois irlandeses e um
judeu. Cf. D. P. Rotunda, Motif Index of the Italian Novelia in
Prosa, Bloomington, 1942, K 444, Dream sausage (bread): the most
wonderful dream.
Gustavo Dodt Barroso (Fortaleza, 29 de dezembro de 1888 — Rio
de Janeiro, 3 de dezembro de 1959) foi um advogado, professor,
político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista
brasileiro.
Texto extraído do livro “Ao Som da
Viola”, Rio de Janeiro, 1921, p. 413.
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