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Dias idos e não vividos
Gilvan
Lemos
A estrada de rodagem findava no silêncio. Estreita na terra pura, nua, ao chegar à curva
parecia que o mato a havia engolido. Nas partes fofas, de areia, as marcas dos pneus do
caminhão do leite; nas duras, onde sempre entremostrava-se um lombo cinzento de pedra, a
solidão faiscante do sol, a presença firme do sol, a expectativa de uma coisa que
indistintamente ia acontecer e que nunca acontecia.
O zumbido da desnatadeira manual, a força humana regrada pelo ritmo impositivo da
máquina, a fadiga dum braço transmitida ao outro, a conformação refletida no olhar
esmorecido, a contabilidade mental do volume de leite a ser desnatado ainda.
Eu tinha uns quinze anos, mais ou menos.
Espaçadamente, os fornecedores diários. Modestos, pequenos produtores. E o leite. Em
latas na cabeça, em alimárias, parte da carga contrapesada com mochilas de milho,
feijão, pedra, mamona. Murmúrios de vozes mal acordadas, zurrar metódico de jumentos,
passadas breves, ruído de uma folha de papel sendo rasgada. E a lamúria dos porcos
grunhindo no chiqueiro.
Era uma fábrica de laticínios, era?
Entreposto. Desnatava-se parte do leite, era eu quem desnatava. À tarde o
caminhão do leite vinha apanhar.
O homem. Agreste, robusto, a barba sempre por fazer. A camisa, por dentro das calças,
entreabertas na prega do último botão, o umbigo rodeado de pêlos negros. No chão
engordurado seus tamancos não retiniam, sim em casa, onde o piso de tijolos era varrido
diariamente. A mulher recomendava: Calce os chinelos. Fumava grosso cigarro, de fumo por
ele mesmo picado. Na extremidade, a que levava à boca, a mancha amarelada da saliva. À
noite, na espreguiçadeira, de frente para a escuridão, falava sozinho. Se a mulher
indagava, ele: Eu não disse nada. Daí então calava-se de fato, os lábios remexendo,
sôfregos, como se ele blasfemasse interiormente.
Correria de ratos na sala da frente, a da recepção do leite, local da desnatadeira.
Esta, a (minha) inimiga. Cães a latir de incompreensão e espanto. Seriam os espectros
noturnos, o rangido dos galhos soprados pelo vento a causa dos seus desvelos. Na manga
iridescente do candeeiro, mariposas cediam à tentação do holocausto. A aranha, em
sombra refletida na parede, aumentada mil vezes, movia-se, dissimulando a concupiscência
logo incitada. E os porcos não grunhiam no chiqueiro.
O homem deixava a cadeira, junto com a baba escura cuspia a ponta do cigarro. Boca
escancarada, bocejos longos e repetidos. Dava dois passos. Cambaleando, espreguiçando-se
furiosamente, encaminhava-se para o terreiro. O espaço desocupado adquiria-lhe a
personalidade e, impositivo, recalcitrante, esperava-lhe o retorno, a resguardar-lhe a
posição de mando. Lá fora os cães se acalmavam. O cavalo, olhos brilhantes como de
labaredas, sacudia a cabeça, a tábua do pescoço retesada, as crinas empoeiradas de
mistério. Eh-eh, fazia o homem, num acento inusitado de ternura. E, mãos nos quadris, a
cabeça erguida para a negridão do céu, urinava no tronco do marmeleiro.
Portas batidas, janelas entrameladas. A espreguiçadeira, reposta no lugar de costume,
resignava-se à própria imparcialidade. Os tamancos do homem conduziam-no à ausência.
Sinais íntimos, últimos ruídos preparando-se para serem extintos pelo sono. Dele,
porque para os outros (para mim) a noite se eternizava na insônia. Restavam na sala
fulgores auditivos de um passado recente. Luzes e brilhos ouvidos mais do que vistos.
Ouvidos pelo coração. Em transe o coração. A voz duma menina que lhe segura as
(minhas) mãos: Não vá não, besta. Você vai se enterrar ali. E outra mulher, como esta
agora remendando velhas camisas e calças desbotadas: É preciso, filho, será um ajuda
para nós. Seu pai... Este a interrompia: Com onze anos saí de casa para ganhar a vida.
Vida, vida! A que estava vivendo, a que deixara para trás, a que se enfumava na
lembrança, a que ingenuamente lhe aprazia e lhe faltava. Claros dessa outra vida, sonhos
sonhados na vigília. E aquela estrela, mais do todas brilhante, a iludi-lo com o
esplendor dum êxito indefinido.
Da camarinha, ressonos altos, roncos cavernosos. O homem penetrava-se em si mesmo, com o
mesmo poderio pertencendo-se, com a mesma força mantendo o respeito intransferido. Na
sala, a mulher, sem pressa de terminar os seus remendos, torcia a agulha escapa da agulha,
tornava a enfiá-la no buraco: Não vai dormir? A ele (a mim) perguntava, e desfazia-lhe o
procurado encanto. Porque, embora a semelhança física, sua voz diferençava da da outra
e, sem ser áspera ou ofensiva, faltava a ela um toque inexplicável de meiguice, aquele
que só se encontra na voz das mães que estão distantes.
Pelas frestas dos olhos umedecidos não mais a sombra da aranha na parede, não mais o
recurso de acompanhar o vôo suicida das mariposas. E os ratos do depósito tinham
sossegado.
Quem eram eles? O homem do entreposto e a mulher, quem eram eles?
Ela, irmã de minha mãe; ele, naturalmente, seu marido. E meu patrão.
As mãos tornadas insensíveis pelos calos, o enfado que não se acomodava ao remanso, o
sono que não encontrava repouso. A voz da mulher, desta, a tia, ponteando-lhe as cordas
da memória: Não teve mais notícia de sua mãe? O carinho, de que não tinha costume,
empanado em promessas duvidosas: Sábado consigo que você vá à cidade. O olhar rápido,
suspenso do alinhavo: Vai ver a feira, seus pais, seus irmãos. E num quase sorriso de
cumplicidade: A namorada... Não tinha uma? E então?
Sábado ou domingo. Não havia parada. No peito da vaca o leite não podia esperar para
ser tirado na segunda-feira; no entreposto não aguardaria sem mácula pela desnatação.
Tampouco o caminhão deixaria de vir por um ou dois dias. Ele (eu) sabia disso, ela
também. Os roncos inadvertidamente interrompiam-se na camarinha. E a voz do homem chegava
suspicaz à mulher emaranhada em suas linhas: Não vem dormir hoje não? Era o sinal. O
final. Do serão.
À tarde, o motorista do caminhão do leite trouxera-lhe um recado: Seu pai mandou dizer
que é pra você ir sem falta, sua mãe está muito mal. O olhar enviesado do patrão,
falanges cabeludas rasgando o papel da nota de remessa. A tia, em sombra furtiva
transmudada, passando ligeiramente da porta dos fundos à varanda. No espaço, o tempo
parado. Tudo parado. O motorista, com a última sílaba da última palavra do recado
suspensa na boca aberta; o patrão segurando a nota que não se despregara de todo e que
não se largava do bloco porque ele não acabava de puxá-la; a tia, de perfil, um pé
erguido, sem dar a passada final que a conduziria à varanda. E os porcos grunhindo no
chiqueiro.
Posso esperar no máximo dez minutos, completara o motorista. Não mais os porcos, só o
zumbido da desnatadeira. Deixada de lado, ainda lhe transmitia o parco movimento. Dos
músculos dele (de mim) inda exigia a força da vibração. E nos ouvidos fixava-se,
monótona-eterna-calculadamente: a rígida marcação, o compasso opressivo da incerteza.
Eis a roupa especial colocada sobre a cama. Junto, os sapatos de irem à cidade e para
esse fim jamais utilizados, e mais a pressa de revestir o corpo sujo de suor, calças os
pés tanto tempo desacostumados de semelhante ostentação. Súbito, o patrão encostado
no portal: Só depois de lavar o vasilhame. Por trás dele a mulher, a tia: Assim não vai
dar tempo de pegar o caminhão. Silêncio intencional, o homem: Vai depois, a pé, o
cavalo está doente. A outra voz, perdendo suavidades: Mas é tão longe! É a mãe dele,
não compreende? E a ordem definitiva: Tanto faz.
Da janela, a mulher em vigilância. Era o marido que ela acompanhava com a vista. Ele, que
tratava do cavalo e que, após, o conduziria ao pasto. Foi nessa ocasião que ela procurou
o sobrinho. Levara-lhe a muda da roupa e os sapatos havia pouco abandonados: Troque-se aí
mesmo, apresse-se que talvez ainda possa pegar o caminhão. Cortando em direção ao rio
você o alcançará quando ele vier de volta. E o vasilhame? Ela mesma lavava. Ao partir,
cabisbaixo, apenas ouviu não precisava voltar-se para saber que a tia estava com
os olhos pisados: Vá com Deus, meu filho. Só volte aqui quando quiser. E se quiser.
No ponto indicado, as marcas dos pneus na areia solta não pareciam recentes. Tão cansado
se mostrava, não tempo de regozijar-se. A estrada triste era igual à que se avistava do
entreposto nas tardes de longa aflição sem recompensa. O sol já não queimava, os
pássaros escondiam-se no silêncio, o vento embalava a solidão presente fora e dentro
dele (de mim).
Mesa posta, a família toda reunida. Os irmãos casados sem as esposas, as irmãs sem os
maridos. Na cabeceira o pai, a calva esbranquiçada, a espera contrita. A luz fraca
pendente do fio encaroçado de moscas, o relógio da parede batendo as horas, inatendido e
solitário em sua marcha laboriosa, de roteiro jamais-em-tempo-algum alterado. Ninguém
demonstrava dar por ele, por ele ou pelo relógio, o que não era de estranhar: seus
lugares, respectivos, viviam sem novidades ocupados. Os cheiros, os ruídos de costume
vindos da cozinha; os vários olhares de olhos injetados, as bocas salivantes. E um coro
de avidez rumorejando nos lábios tensos, retorcidos. Foi quando a mãe surgiu da porta
estreita, só ela alegre, só ela notando sua presença: Chegou enfim! Bem na hora. Vamos
comer, meu filho. Mas em vez disso ela o abraçava chorando.
Como? Então tinha ficado boa?
Sonhei. Enquanto aguardava o caminhão, adormeci sentado numa pedra, a cabeça
encostada no tronco duma árvore. Me lembro que quando acordei estava com o rosto lavado
das lágrimas do sonho. O fato é que, ao chegar à cidade, ela já havia morrido.
Olhara-a rapidamente, apenas para certificar-se de que não era a mesma. Nos traços da do
entreposto havia deixado a fisionomia, os gestos, a ternura calma, conforme vinha há
tempo recompondo e comparando. A semelhança era tanta! Não no timbre da voz. Mas a daqui
já não falava. As condolências, os reconfortos. Não queria que a ninguém pertencesse
a dor de tê-la perdido, sua dor, íntima-úmida-dor. Por outro lado, a ninguém queria
mais pertencer. E não se pertencia. De fora, ausentando-se, não se julgava de casa.
Desta. A casa onde morre uma pessoa querida não é mais a nossa casa. Petrificava-se,
pretendia ser único, ímpar no mundo. Mas quando o pai lhe disse: Ela ontem chamou tanto
por você... sucumbiu, entregou-se, o filho, também do pai, retornado. E quando o
parente idoso, homem de prestígio, tentou acalmá-lo (Conforme-se, menino, foi um
descanso pra ela.), agrediu-o, batendo-lhe no rosto, forte, desatinado.
Foi o maior escândalo.
Voltou, depois, pra trabalhar no entreposto?
Não. Acalmados os ânimos, esse parente idoso, através do seu prestígio,
conseguiu um emprego pra mim na prefeitura. Era um homem bom, me compreendeu.
Gilvan (de Souza) Lemos nasceu na cidade de São Bento do Una
PE, no dia 1º de julho de 1928, onde fez os primeiros estudos e residiu até 1949, quando
se transferiu para o Recife e permanece até a data presente. Curso de Francês na
Aliança Francesa e de Inglês no Curso Maia. Escreve desde os 15 anos de idade. Publicou
seu primeiro trabalho literário (um conto escrito em 1945) na revista Alterosa, de Belo
Horizonte, em março de 1948. São mais de 20 livros de ficção publicados, além dos
textos em coletâneas e periódicos.
I Romances:
01. Noturno sem música. Recife: Ed. Nordeste, 1956. Prêmio Vânia Souto Carvalho, da
Secretaria de Educação PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1996
02. Jutaí menino. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968. Prêmios: Orlando Dantas, do Diário
de Notícias (Rio); Olívio Montenegro, da UBE PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995
03. Emissários do diabo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Prêmio da
APL. 2ª ed. São Paulo: Editora Três, 1974 (Coleção Literatura Brasileira
Contemporânea); 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987
04. Os olhos da treva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Menção
Honrosa (Prêmio José Conde/Recife). 2ª ed. S. Paulo: Círculo do Livro,1983
05. O anjo do quarto dia. P. Alegre: Globo, 1981, Prêmio Érico Veríssimo, da mesma
editora. 2ª ed. São Paulo: Globo, 1988. 3ª ed. Recife: Bagaço, 2002
06. Os pardais estão voltando. Recife: Guararapes, 1983
07. Espaço terrestre. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1993
08. Cecília entre os leões. Recife: Bagaço, 1994. 2ª ed. Recife: Bagaço:
2007
09. A lenda dos cem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 2ª ed. Recife,
Ed. Bagaço, 2005
10. Morcego cego. Rio de Janeiro: Record, 1998
11. Vingança de desvalidos. Recife: Nossa Livraria, 2001
II Contos:
01. O defunto aventureiro. Recife: EDUFPE, 1974. Menção Honrosa do Prêmio José Lins do
Rego, da Ed. José Olympio (Rio). 2ª ed. Recife: Bagaço, 2001
02. Os que se foram lutando. Rio de Janeiro: Artenova, 1981
03. Morte ao invasor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984
04. A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991
05. Onde dormem os sonhos. Recife: Nossa Livraria, 2003
06. Largo da alegria. Recife: Bagaço, 2003
III Novelas:
01. A noite dos abraçados. Porto Alegre: Globo, 1975
02. O mar existe. In: A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991
03. Enquanto o rio dorme. Recife: Bagaço, 1993 (uma das novelas de A noite dos
abraçados)
04. Neblinas e serenos. Recife: Bagaço, 1994 (duas das novelas de A noite dos
abraçados). 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995
05. A Era dos Besouros Editora A Girafa São Paulo Maio de 2006
06. Na Rua Padre Silva Editora Nossa Livraria Recife Outubro de
2007
IV. Contos nas coletâneas:
01. O urbanismo na literatura. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1975
02. O novo conto brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985
03. Seleta de autores brasileiros. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1987
04. Memórias de Hollywood. São Paulo: Nobel, 1988
05. Contos de Pernambuco. Recife: Massangana, 1988
06. Erkundunger 38 Brasilianische Erzahler. Berlim: Verlag Volk und Welt Berlin, 1989
07. Le serpent a plume. Paris, 1994
08. Caravanes. Paris, 1998
09. Antologia do conto nordestino. Recife: Micro, 1998
10. Panorama do Conto em Pernambuco Fundação Maximiano Campos - Recife
Outubro de 2007
Texto extraído do livro "A Inocente Farsa Da Vingança", Ed. Estação
Liberdade São Paulo Maio, 1991.
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