Último texto Desaforismos
"Tudo o que vemos é outra coisa."
Fernando Pessoa - Primeiro Fausto
Franklin Jorge
Ao embaixador Fernando Abbott Galvão.
Ascese: A rotina é uma forma de ascese.
Alegria: A alegria, de essência vulgar, é o consolo dos pobres.
Arquivo: V. Corpo.
Artista: Um artista alegre é tão inconcebível quanto um boi voador.
Bagdad: V. Sertão.
Balé: O balé é por demais abstrato.
Café: Ópio dos intelectuais. Madame de Sévigné repudiou o café como um modismo de
cortesãos. Não foi feliz quando lhe vaticinou um sucesso efêmero.
Carnaval: O carnaval é a ópera socializada.
Casamento: Comodidade que acaba incomodando. Suprema punição do indivíduo que recorre
ao hábito da família.
Clube: A feira, popular e multitudinária, é o clube do homem sertanejo.
Corpo: Arquivo de sensações.
Criar: Criar, para burlar a morte.
Dândi: Homem que não gosta de tirar a roupa.
Édipo (Complexo de): O homem é de tal forma edipiano que às vezes casa-se apenas para
ter uma sogra.
Envelhecer: Embora o corpo não constitua obstáculo ao romance, sinto o grave desgosto de
envelhecer.
Excesso: O excesso de limão estraga a ostra.
Excrescência: Os seios, numa mulher, são excrescência. Como a barba, nos homens.
Escrever: Escrever é transgredir os códigos. Escrever paralisa os hipócritas. Escrever
é a vingança do mais fraco. Escrever equivale a um lento suicídio. É o ato mais
próximo do suicídio. Quero disciplinar-me a escrever com uma raiva fria.
Família: uma sociedade de estranhos que se cumprimentam e às vezes se agridem. A vida em
família é uma maneira aceitável de autopunição.
Filhos: Os filhos pagam os prazeres dos pais, mas rolam a dívida para os netos e bisnetos
etc.
Humor: A ausência de humor embrutece o homem.
Jornalismo: Profissão de homens sem profissão. A sociedade espera mais do que recebe do
jornalismo.
Linguagem: A linguagem sertaneja é por demais refinada. Muita vez ouvi dizer "miolo
de quartinha", significando a conversa fútil, inconsistente, jogada fora, a prosa
vadia.
Mediocridade: A mediocridade é contaminante. Sempre vence. A mediocridade é o partido
dos que tiram vantagem de tudo na vida.
Metáfora: A mais bela metáfora é a do homem que escala a montanha.
Morrer: Antes morrer de Aids do que de tédio.
Morte: A morte é ecológica.
Motel: Sinônimo de supermercado.
Mulheres: As mulheres seriam os melhores amigos do homem, se soubessem distinguir sexo de
amizade.
Museu: O museu do futuro não terá limites.
Música: Quando menino eu gostava de cantar e tinha uma bela voz. Depois, meu ouvido
tomou-se impaciente para a música. O pior dos ruídos, segundo Napoleão. Dante não faz
referência à música no seu poema.
Músicos: Convivi em minha infância com violeiros, músicos e poetas ambulantes,
populares no sertão nordestino. Aprecio alguns músicos que não sei bem se o são. Eric
Satie, Jean-Michel Jarre, Ravel e Saint-Sãens.
Narcisismo: A idéia de procriar é o cúmulo do narcisismo.
Nietzsche: O mundo seria pobre sem os ditirambos de Nietzsche, assassino de Deus.
Ópera: A ópera é um carnaval estilizado. É um espetáculo que cansa os sentidos.
Resultaria numa tortura refinada a imposição de uma temporada que durasse infinitamente.
Orgasmo: O orgasmo não vale o esforço de tirar a roupa. Os homens confundem orgasmo com
poder.
Piscina: A piscina é o símbolo infeccioso de uma época vulgar e promíscua. Piscina é
coisa de romano ou arrivista.
Plástico: O plástico é uma matéria-prima repulsiva, símbolo descartável da sociedade
de consumo. Nos séculos 17 e 18, civilizadíssimos, não havia plástico.
Rabo: Sinônimo de cu. Rogaciano Leite, escrevendo sobre os efeitos da seca no Nordeste,
disse que Deus não viu quando o diabo amarrou uma tocha flamífera no rabo e saiu a
correr incendiando o sertão.
Releitura: A cada releitura de Ascendino Leite, pensador de um infinito jornal literário,
tenho a noção de que aprendi alguma coisa.
Remorso: O remorso é uma metáfora do inferno. É um inferno para uso privado.
Ricos: Mesmo entre os ricos há os que trabalham e os que se divertem.
Ridículo: Somente o ridículo tem vida eterna. Somente o ridículo sobrevive ao homem.
Somente o ridículo é eficaz.
Rir: Os homens vulgares não sabem rir.
Ruído: A palavra ruído me cativa com a sua sonoridade sincopada.
Sauna: A sauna é o que há de mais próximo de um templo. Como nos santuários de antigos
deuses do paganismo, aqui a prostituição é ofício sagrado. É uma maravilhosa
invenção que reúne em um mesmo âmbito duas coisas sagradas: religião e
prostituição. Nunca entrei numa sauna sem um certo temor reverente.
Sertão: O sertão é um mundo na fronteira do Oriente. Para o sertanejo, toda cidade é
um pouco Bagdá. O sertão é uma utopia de João Guimarães Rosa.
Sexo: De origem vulgar. O sexo é suspeito porque implica a cumplicidade de um parceiro. O
sexo competitivo é tão insípido quanto um rodízio de churrascaria. Uma herança das
cavernas. Sinônimo de tédio.
Sobressalto: O luxo de criar, enfim, um sobressalto.
Solidão: Conquista difícil, prêmio de poucos.
Sonhos: Os sonhos são alquímicos.
Tragédia: Quase todo noivado antecipa uma tragédia.
Utopia: A utopia é um nobre refúgio.
Vaqueiro: Porque tenho a alma de vaqueiro, sigo adorando os sons orientais.
Vulgaridade: A vulgaridade é superlativa.
Franklin Jorge (1952) nasceu na cidade de Ceará Mirim, no Rio Grande do Norte.
Escritor eclético e enigmático, jornalista de renome, é autor de "Impróprio para
menores de 18 anos" - Limiar, 1976, em parceria com a escritora Leila Míccolis;
"Poemas Apócrifos" (in_Fantasmas Cotidianos - Navegos, 1994); "Abaixo do
Equador" e "Ficções Fricções Africções" - Mares do Sul, 1999,
ganhador do Prêmio Luís da Câmara Cascudo, de onde extraímos o texto acima, pág. 53.
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