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A estante
Ferreira
Gullar
Naquele novo apartamento da rua Visconde de Pirajá pela primeira vez teria um escritório
para trabalhar. Não era um cômodo muito grande mas dava para armar ali a minha tenda de
reflexões e leitura: uma escrivaninha, um sofá e os livros. Na parede da esquerda
ficaria a grande e sonhada estante que caberia todos os meus livros. Tratei de
encomendá-la a seu Joaquim, um marceneiro que tinha oficina na rua Garcia D'Avila com
Barão da Torre.
O apartamento não ficava tão perto da oficina. Era quase em frente ao prédio onde
morava Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a antiga Montenegro, hoje Vinicius de
Moraes. Estava ali há uma semana e nem decorara ainda o número do prédio. Tanto que,
quando seu Joaquim, ao preencher a nota da encomenda, perguntou-me onde seria entregue a
estante, tive um momento de hesitação. Mas foi só um momento. Pensei rápido: "Se
o prédio do Mário é 228, o meu, que fica quase em frente, deve ser 227. "Mas
lembrei-me de que, ao ir ali pela primeira vez, observara que, apesar de ficar em frente
ao do Mário, havia uma diferença na numeração.
Visconde de Pirajá 127 respondi, e seu Joaquim desenhou o endereço
na nota.
Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês estará lá sua estante.
Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se reduz esse prazo.
A estante é grande, dá muito trabalho... Digamos, três semanas.
Contei as semanas. Não via chegar o momento de ter no escritório a estante sonhada, onde
enfim poderia arrumar os livros por assunto e autores. E,mais que isso, sentir-me um
escritor de verdade, um profissional, cercado de livros por todos os lados. No dia da
entrega, voltei do trabalho apressado para ver minha estante.
Como é, veio? perguntei ao entrar.
Veio o quê?
Como o quê? A estante!
Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a palavra empenhada, ah português filho de...
Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz, minha irritação. E ele:
Como não cumpri? Andei com dois homens de cima para baixo da rua e não encontrei
o tal número que o senhor me indicou. Não existe na rua Visconde de Pirajá o número
127, senhor Ferreira.
Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.
Diga-me o número certo e sua estante estará em sua casa amanhã mesmo.
Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número seria? Não era 227, disso
tinha certeza... E o Joaquim ao telefone:
Qual o número, seu Ferreira?
É 217, seu Joaquim... É isso, 217.
Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua estante.
Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a estante não estava lá, conclui que havia
dado de novo o número errado ao marceneiro. E corri para o telefone a fim de me
desculpar.
Seu Joaquim, é o senhor Ferreira... da estante.
O senhor está querendo brincar comigo?
Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu Joaquim, indignado, dizia que não ia mais
entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-la, pois já era a segunda vez que subira e
descera a Visconde de Pirajá, carregando aquela estante enorme, etc. etc...
O texto acima foi extraído do livro "A estranha vida banal", José
Olympio Editora - Rio de Janeiro (RJ), 1989.
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Gullar e sua obra em "Biografias".
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