No folhetim do Diário Popular de 24 de Junho lêem-se notáveis considerações de ordem
moral. São em verso. O poeta dirige-se, na sua declamação solitária, a uma mulher.
Numa prosa anterior (prelúdio) escreve que a missão da arte é ensinar a amar (!)
e que na arte não entra realidade, justiça ou moral pública porque (acrescenta) a arte
nada tem com os direitos civis. Colocado assim à larga, na anarquia da voluptuosidade e
do lirismo, aí está o que o poeta expõe e ensina num jornal popular, com uma tiragem de
20.000 exemplares, que anda por cima das mesas e nos cestos de costura!
Começa por dizer:
Que é bom amar no campo, à tarde e a sós!
Depois continua:
Que prefere o campo, porque nas salas do mundo não lhe é dado beijar a mão dela
às largas! Que o campo é livre e as sombras dão refúgio!....
Por fim acrescenta:
Que queria que os raios cintilantes os cingissem a ele só com ela, erguidos em
êxtase, longe de quanto é vil...
(Quanto é vil, na gíria da poesia lírica, é o mundo real, a família, o trabalho, as
ocupações domésticas, etc.).
Dispensamo-nos de citar mais estrofes lascivas.
Aquelas bastam para legitimar as seguintes observações:
Nenhum jornal publicaria semelhantes teorias em prosa;
Nenhum homem que as escrevesse ousaria lê-las a sua filha, sem gaguejar, e sem comer
palavras;
Nenhuma senhora que por acaso as tivesse lido ousaria citá-las.
Como se consente então a sua publicação em verso? A higiene não é só a
regularização salutar das condições da vida física; nela devem também entrar os
factos da moralidade. Se é proibido que um monturo imundo ou um cão morto corrompam o ar
respirável das ruas porque há-de ser permitido que um poeta, com as suas endechas
podres, perturbe o pudor e a tranqüilidade virgem?
Há uma postura da Câmara que impõe uma multa a quem pronuncia palavras desonestas:
porque não há-de ser igualmente proibido publicar idéias desonestas?
Um ébrio, um pobre homem a quem se não deu educação, a quem se não pode dar leitura,
a quem quase se não dá trabalho, diz uma praga numa rua, ouvida apenas de três ou
quatro pessoas, e vai para a cadeia ou paga uma multa de 3$000 réis. Um poeta lírico,
esclarecido, aprovado nos seus exames, empregado nas secretarias, publica num jornal de
cinqüenta mil leitores em letra impressa, permanente e indelével, uma série de
desonestidades, e é apreciado, cumprimentado no Martinho, indigitado para uma
candidatura!
Pedimos pois:
Ou que seja permitido livremente dizer na rua e no jornal pragas e desonestidades;
Ou que a multa da Câmara Municipal seja aplicada a todos e que tanto o ébrio que
não sabe o que diz à esquina de uma rua, como o poeta lírico que escreve, com reflexão
e rascunho duma semana, ao canto dum jornal, paguem os 3$000 réis à Câmara, um pela sua
praga, outro pela sua endecha.
Julho 1871
"E assim desses tempos ardentes me ficara a idéia duma campanha muito alegre, muito
elevada, em que a ironia se punha rapidamente ao serviço da justiça. Todo êste livro é
um riso que peleja."
Assim Eça de Queiroz se referiu a Uma Campanha Alegre, de onde
extraímos o texto acima (Editora José Aguilar - Obras de Eça de Queiros - Volume III,
pág. 1202).
José Maria Eça de Queiroz (1845-1900) nasceu na Póvoa de Varzim,
Portugal, e faleceu em Paris, França. Estudou Direito na Universidade de Coimbra,
tornando-se amigo de Antero de Quental, entre outros. Participou nas Conferências do
Casino e é um dos da Geração de 70. Foi nomeado cônsul, tendo viajado pelo Egito,
Cuba, Londres, Paris, etc. Das suas obras destacam-se Uma Campanha Alegre (1871), O
Crime do Padre Amaro (1875-1876), O Primo Basílio (1878), A Relíquia (1887),
Correspondência de Fradique Mendes (1900), A Cidade e as Serras (1901) e
Contos (1902). Traduziu o romance de Rider Haggard, As Minas de Salomão. É
considerado um dos maiores romancistas portugueses do século XIX.
Agradeço a Luiz Carlos de Azevedo pela idéia e pelo empréstimo dos livros.
(mantida a grafia original)