Último texto
Orgia
Dinah Silveira de Queiroz
As filhas, já às oito ou nove horas, perguntavam, devagarinho, boiando num resto de
sono, tomando o café com leite:
"A senhora também hoje se levantou antes das quatro"?
"De certo, meninas. Que é que se vai fazer? Antes das quatro a fila já
estava um colosso! Ia até a esquina. Ah! Vocês são umas preguiçosas. Não sabem quanta
gente se levanta cedo!".
As filhas e o marido se impressionavam com aquele estranho zelo da dona de casa. Por que
não mandar a empregada?
"Na leiteria já me conhecem. Se eu mandar a criada, vocês nem vêem a cor do
leite. E para mim o leiteiro vende quantos litros eu queira.
Começou a fazer uns vestidos, não tão leves, não tão leves, não... para a fila do
leite. As quatro, sempre corria uma aragem friorenta, vinda das bandas da praia. Os
vestidos eram folgados "pra gente estar à vontade" e também
assim eram os sapatos de salto baixo:
"Esses são mesmo próprios. Não cansam. Meninas! Não quero que usem os meus
sapatos da fila, Vão deformar o calçado. Eu preciso de toda a comodidade."
Era estranho aquele requinte. Dizia o pai à filha: "Você já reparou como
sua mãe agora deu para gostar de fila?"
O marido resolveu experimentar a mulher:
"Amanhã eu vou. Ainda tiro um soninho depois". "Vai, nada!
Você tem trabalhado muito. Mais um sacrifício e a senhora suspirou já
não é nada para mim !"
Ontem, esperava um táxi para a viagem a São Paulo e por acaso surpreendi a dama da fila
da madrugada, Uma espessa, íntima união estava naquela fila da leiteria. Encostava-se a
dona molemente, um pouco tonta ainda de sono, à árvore. Uma vizinha contava qualquer
coisa. Ela ria, um riso ainda com resto de lençol,, de travesseiro fofo. 0 cinqüentão
do apartamento do primeiro andar coara o próprio café, o cheirava bem o seu hálito na
madrugada. Era uma fila limpa, perfumada a dentifrício, a roupa fresca plena de
comodidades caseiras. A madame do dezenove, justamente a mais bonita, com um vestido
parecendo quimono, dobrou um jornal sobre o chão da calçada. Sentou-se rindo,
distribuindo o seu gostoso sorriso, como vinho para todos. E logo, outras a imitaram.
Passavam rente as criaturas que voltavam das boites. Um homem largava seus
recalques cantando, do outro lado da rua. Sua voz era cálida, um pouco pastosa. Nunca
aquele homem cantaria assim em casa. A rua da madrugada era a rua das ousadias.
As janelas estavam fechadas sobre mistérios e intimidades. Pela fila agora passavam uns
moços morenos, bonitos, que iam à pesca. As aventuras do mar bafejaram a pequena
multidão. Os rapazes falavam alto, excitados. O mar noturno vinha molemente até a
calçada, por intermédio dos passantes joviais.
O dia já se vem anunciando. Em breve a leiteria levantará sua cortina metálica e
estudantes, caixeiros, a turba do trabalho, estará na rua. A vida será estúpida, na
atividade doméstica. E só amanhã, às quatro horas, haverá a transfiguração da
cidade, mostrando seus segredos, mansa, íntima, tão perto, cheia de histórias
balbuciadas, plena de orgia da madrugada.
Dinah Silveira de Queiroz nasceu em 09/11/1910 na capital paulista. Publicou seu
primeiro conto em 1937, e dois anos depois lançou seu primeiro livro, "Floradas
na Serra", obtendo grande sucesso e sendo premiada pela Academia Paulista de
Letras. Em 1954 recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo
conjunto de sua obra. Desempenhou as funções de adido cultural do Brasil junto à nossa
Embaixada em Madrid. É a autora de "A Sereia Verde", "Margarida
La Roque", "Aventuras do Homem Vegetal", "A Muralha",
"O Oitavo Dia", "As Noites do Morro do Encanto", dentre
outros. Como cronista, assinou no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, a seção
"Café da Manhã", e no Jornal do Commércio, da mesma cidade, a
seção "Jornalzinho Pobre". Colaborou em programas na Rádio Ministério
da Educação e na Rádio Nacional.
O texto acima foi extraído do livro "Quadrante 1", Editora do Autor - Rio de
Janeiro, 1962, pág. 85.
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