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A donzela Arabela
(O amanuense Belmiro)
Cyro dos Anjos
Aconteceu-me ontem uma coisa realmente extraordinária. Não tendo conseguido conter-me em
casa, desci para a Avenida, segundo habito antigo. Já ela estava repleta de
carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite.
Pus-me a examinar colombinas fáceis, do lado da Praça Sete, quando inesperadamente me vi
envolvido no fluxo de um cordão. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana
vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trás, pela frente e pelos flancos.
Entreguei-me, então, aquela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas
eram tristes e homens pingavam suor. Um máscara-de-macaco deu-me o braço e mandou-me
cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, já agora,
não ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio
daquela roda alegre, pois os foliões e engraçaram comigo, e fui, por momentos, o
atrativo do cordão. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha
canção de Vila Caraíbas.
Uma gargalhada espantosa explodiu em torno de mim. Deram-me uma corrida e, depois de me
terem atirado confete à boca, abandonaram-me ao meio da rua embriagado de éter. Novo
cordão levou-me, porém, para outro lado, e, nesse vaivém, fui arrastado pelos
acontecimentos. Um jato de perfume me atingia às vezes. Procurava, com os olhos gratos, a
origem dessa caricia, mas percebia, desanimado, que aquele jato resvalara de outro rosto a
que o destinara uma boneca holandesa. Contudo, aquelas migalhas me consolaram e comoviam.
Dêem-me um jato de éter perdido no espaço e construirei um reino. Mas a boneca
holandesa foi arrastada por um príncipe russo, que a livrou dos braços de um marinheiro.
Bebendo aqui, bebendo ali, acabei presa de grande excitação, correndo atrás de choros,
de blocos e cordões. Não sei como, envolvido em que grupo, entrei no salão de um clube,
acompanhando a massa na sua liturgia pagã.
Lembra-me que homens e mulheres, a um de fundo, mãos postas nos quadris do que ia à
frente, dançavam, encadeados, e entoavam os coros que descem do Morro.
Toadas tristes, que vêm da carne.
A certo momento, alguém enlaçou o braço, cantando: Segura, meu bem, segura na
mão, não deixes partir o cordão... O braço que se lembrou do meu braço tinha
uma branca e fina mão. Jamais esquecerei: uma branca e fina mão. Olhei ao lado: a dona
da mão era uma branca e doce donzela. Foi uma visão extraordinária. Pareceu-me que
descera até a mim a branca Arabela, a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as
andorinhas vão pousar. Pobre mito infantil! Nas noites longas da fazenda, contava-se
história da casta Arabela, que morreu de amor e que na torre do castelo entoava doridas
melodias.
Efeito da excitação de espírito me que me achava, ou de qualquer outra perturbação,
senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos só percebiam a doce visão. Era ela,
Arabela. Como estava bela! A música lasciva se tornou distante, e as vozes dos homens
chegavam a mim, lentas e desconexas. Em meio dos corpos exaustos, a incorpórea e casta
Arabela. Parecia que eu me comunicava com Deus e que um anjo descera sobre mim. Meu corpo
se desfazia em harmonias, e alegre música de pássaros se produzira no ar. Não me lembra
quanto tempo durou o encantamento e só vagamente me recordo de que, em um momento
impossível de localizar, no tempo e no espaço, a mão me fugiu. Também tenho uma vaga
idéia de que alguém me apanhou do chão, pisado e machucado, e me pôs num canapé onde,
já sol alto, fui dar acordo de mim.
O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas
tem uma força que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer,
desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro. Mas viviam os mitos, que são o
pão dos homens.
Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa
fase da vida em que o espírito abre mão de suas conquistas, e o homem procura a
infância, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.
Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente as puras e melhores
emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade
descendo de novo cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a face real
das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente parece-me a única
estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para
que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula
para nos conciliarmos com o mundo.
Cyro Versiani dos Anjos, jornalista, professor, cronista,
romancista, ensaísta e memorialista nasceu em Montes Claros (MG), em 5 de outubro de
1906.
13º dos quatorze filhos do casal Antônio dos Anjos e Carlota Versiani dos Anjos, iniciou
seus estudos naquela cidade e, depois, em Belo Horizonte (MG), a partir de 1923, onde
estudou humanidades e fez o curso de Direito, tendo se formado em 1932 pela Universidade
Federal de Minas Gerais. Trabalhou nessa época como funcionário público e jornalista
(Diário da Tarde - 1927; Diário do Comércio - 1928; Diário da Manhã - 1920; Diário
de Minas - 1929 - 1931); A Tribuna 1933, e no Estado de Minas (1934 - 1935).
Advogou por pouco tempo em sua cidade natal, tendo optado por continuar trabalhando na
imprensa e no serviço público. Exerceu diversos cargos no governo estadual de Minas,
tendo sido professor de Literatura Portuguesa na Faculdade de Filosofia de Minas Gerais,
(1940 1946), na qualidade de fundador.
Em 1933, como redator de A Tribuna, publicou uma série de crônicas que
seriam o germe do seu mais famoso romance, O amanuense Belmiro (1937), de
análise psicológica, escrito na linha machadiana, explorando a vida de um funcionário
público da capital mineira.
Em 1946, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde ocupou, durante o governo Dutra, as
funções de assessor do ministro da Justiça, diretor do Instituto de Previdência e
Assistência dos Servidores do Estado IPASE (1946-51), e presidente do mesmo Instituto, em
1947. Colaborou também em diversos órgãos da imprensa carioca.
Convidado, em 1952, pelo Itamarati, a reger a cadeira de Estudos Brasileiros, junto à
Universidade do México, residiu nesse país até 1954, quando foi transferido para igual
posto na Universidade de Lisboa. Em Portugal publicou o ensaio A criação
literária (1954).
Em fins de 1955 regressou ao Brasil, e, em 1957, foi nomeado subchefe do gabinete civil da
Presidência da República, no governo Kubitschek. Participou da Comissão designada pelo
Governo Federal, em 1960, para planejar a Universidade Nacional do Brasília, vindo a
ocupar a função de coordenador do Instituto de Letras da mesma Universidade. Ali regeu,
na qualidade de professor titular extraordinário, em 1962, o curso "Oficina
Literária". Aposentado em 1976, voltou a residir no Rio. Não se desligou das
atividades do ensino, continuando a ministrar, na Faculdade da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, o curso "Oficina Literária".
Recebeu os seguintes prêmios literários: da Academia Brasileira de Letras, pelo romance
Abdias (1945); do PEN-Clube do Brasil e da Câmara Brasileira do Livro, pelos livros
Explorações no tempo (1963) e A menina do sobrado (1979)
Foi o quarto ocupante da Cadeira 24, eleito em 1º de abril de 1969, na sucessão de
Manoel Bandeira e recebido pelo Acadêmico Aurélio Buarque de Holanda em 21 de outubro de
1969.
Faleceu no Rio de Janeiro (RJ), em 4 de agosto de 1994.
Obras:
O amanuense Belmiro, romance (1937)
Traduzido, posteriormente, para o inglês e o francês.
Abdias, romance (1945)
A criação literária, ensaio (1954)
Montanha, romance (1956)
Explorações no tempo, memórias (1963)
Com o texto revisto, passou a integrar A menina do sobrado, sob o título de
Santana do Rio Verde.
Poemas coronários (1964)
A menina do sobrado, memórias (1979)
Texto extraído do livro O amanuense Belmiro, Editora José Olympio Rio
de Janeiro, 1971, pág. 19.
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