Último
texto
Iniciação
Cora
Rónai
Nasci em Ardnamurchan, você não vai conseguir nem pronunciar, quanto mais entender. Mas
não faz mal, Maria Clara, porque isso já foi há tanto tempo. Hoje não importa mais.
Basta você saber que fica na Escócia e que é um lugar muito frio e muito úmido a maior
parte do ano, onde as pessoas são tristes e fechadas em si mesmas. Talvez assim você
compreenda por que sou como sou de vez em quando. Ou não, quem sabe. De qualquer forma,
tudo isto está muito além do que precisamos saber um sobre o outro. Um café?
Archibald ergue-se da poltrona devagar, toma cuidado para não derrubar os livros que tem
sobre os joelhos. Escolhe um disco na estante.
Bach, Maria Clara, que tal? Gottes Zeit ist die alerbeste Zeit, tenho certeza de
que você vai gostar.
Maria Clara estica-se no tapete, fecha os olhos aos primeiros compassos. Ultimamente,
esforça-se para entender Archibald, gostar das cantatas, sonatas e motetos que povoam a
casa. Já consegue reconhecer a música de alguns compositores, pequenos testes que ele
lhe apresenta. Vamos ver se você adivinha de quem e este cânon?
Sentam-se à mesa, arrumam as xícaras, o café, está bom de açúcar? Archibald remexe
uma pilha de cadernos, procura a pagina certa.
Então, vamos ver o que você fez de bom?
Gosta de dar aulas para Maria Clara: elas são, hoje, fugas da rotina da universidade da
qual começa a sentir-se cansado, ensinando, pelo décimo ano consecutivo, as mesmas
coisas a pessoas invariavelmente desinteressadas e desinteressantes. Seu relacionamento
com os alunos é frio, quase impessoal: um pouco por timidez, um pouco por européias
noções de hierarquia que se recusa a abandonar. Isso nunca chegou a incomodá-lo,
especialmente há alguns anos atrás, quando a presença de Lillian tornava outras
presenças desnecessárias. Depois, as relações entre ambos foram-se deteriorando e,
quando mudou-se para o Brasil, ela recusou-se a acompanhá-lo. Embora tivesse sentido
algum prazer em mortificar-se com o fracasso de seu casamento, anos depois Archibald se
viu forçado a reconhecer que, na época, o que sentira fora principalmente uma sensação
de alívio e liberdade. Não havia mais ninguém para controlar-lhe os movimentos ninguém
para reclamar dos cachimbos, impedi-lo de dedicar-se a seus poemas ou abaixar o volume da
vitrola. Não havia mais ninguém, igualmente, para afagar-lhe os cabelos, nenhum corpo à
noite. Esta ausência, entretanto, só veio a notar muito tempo depois na verdade, quando
começou a dar aulas para Maria Clara. Agora gostaria de ter, eventualmente, alguém com
quem conversar, algum amigo. Mas os anos de solidão e uma timidez que, geralmente, não
se encontra nos homens atraentes, o desacostumaram de conversas íntimas, de confidências
sussurradas a meia luz por sobre os cinzeiros. Na universidade, não consegue trocar mais
do que polidos cumprimentos com os colegas; dos alunos, sente-se cada vez mais distante
com o passar dos anos. Aos 40 anos é um homem só e, se por um lado, a solidão
ensinou-lhe muito a respeito de si mesmo, há sentimentos sobre os quais não lhe disse
nada, dos quais começa a ter medo porque os julgava esquecidos para sempre.
Maria Clara, marcando o ritmo da cantata com os dedos, conta o número de ripas da
veneziana entreaberta, percorre as estantes com os olhos, as lombadas verdes, vermelhas, a
imensa pilha de livros de bolso alaranjados. Observa seu professor, a cabeça curvada
sobre o caderno, cachimbo numa das mãos enquanto com a outra anota erros, faz
correções. Os cabelos muito lisos, desmaiados entre o louro e o cinza, caem-lhe sobre os
olhos: quando o cachimbo está preso entre os dentes, a mão, livre, joga-os para trás
num gesto inútil.
Muito bom o trabalho. Você está melhorando, sabe. Ainda tem alguma dificuldade em
expor seu raciocínio numa linha uniforme, mas acho que, na sua idade, nem poderia ser de
outra maneira. E erros de ortografia, precisa prestar mais atenção ao que escreve,
menina.
Mas é que inglês é muito complicado. Muito mesmo.
Um pouco de atenção resolve muitas complicações. Há um texto de Saroyan muito
bonito que eu quero que você conheça. Vou ditá-lo para você, a metade hoje, a metade
amanhã. Onde será que coloquei o livro?
Levanta-se da mesa, vai até uma das estantes onde percorre os livros com a ponta dos
dedos, puxa um volume pequeno, encadernado em amarelo. Escolhe também outro disco, que
leva para a vitrola.
Mais Bach Suite em Ré Maior para violoncelo, Rostropovitch. Pegue o caderno,
escreva: pronta? Esta prestando atenção? In the time of our life, live so in that
good time there shall be no ugliness or death for youself or any life your life touches.
Seek goodness everywhere and when it is found, bring it out of its hiding-place...
O quê?
Hiding-place. Esconderijo. Bring it out of its hiding-place and let it be free and
unashamed. Place in matter and in flesh the least of values, for these are the things that
hold death and must pass away.
Lê muito devagar, separando as frases com cuidado. Maria Clara gosta das palavras, gosta
do som que adquirem na pronúncia clara e um pouco cantada de Archibald. Se ao menos não
precisasse anotá-las! Sente que poderá passar ali o resto da vida, ouvindo-as uma após
a outra, absorvendo-as tão completamente que, depois de algum tempo, perderiam todo o
significado para tornarem-se apenas fragmentos de sons encadeados, como a sonata de Bach
que a vitrola repete em surdina. Ou seria uma suite?
Discover in all things that which shines and is beyond corruption. Vamos parar por
aqui, hoje. Não e bonito? Deixe o caderno comigo. Não vou poder corrigir nada agora,
dentro de meia hora tenho que estar numa reunião na faculdade, você vai ter que ir
embora mais cedo. Sabe que os Beatles vão tocar nos Estados Unidos?
Claro que sei.
Então este vai ser o seu dever de casa: escrever trinta linhas sobre a tournée.
Mas como é que eu posso escrever sobre alguma coisa que ainda não aconteceu?
Usando a sua imaginação, por exemplo.
Poderia passar ali o resto da vida, entre os sons, o cheiro do fumo e os olhos
acinzentados.
Depois de quase um ano, ainda não sabe exatamente por que aceitou dar aulas para Maria
Clara, filha de um professor de física que acabara de voltar da Inglaterra: para que a
menina não perca todo o inglês que aprendeu por lá. Pensou, então, que a experiência
talvez valesse a pena. Mas quando a conheceu, jeans surrados, os cabelos escuros e
compridos presos num rabo de cavalo, um jeito preguiçoso, disco dos Beatles embaixo do
braço, chegou a arrepender-se de não ter afastado a idéia definitivamente. Para sua
surpresa, porém, Maria Clara interessava-se muito mais pelo inglês do que julgara a
principio. E embora inicialmente a tratasse com o mesmo distanciamento que reservava a
todos os alunos e, de resto, a todo o mundo, sem distinções começou, com
o correr do tempo, a descobri-la e, através dela, toda uma geração que nunca despertara
seu interesse antes. Começara a descobrir em si próprio reações que julgava
impossíveis, o riso, a conversa fácil e aberta. Divertia-se ouvindo-a contar o dia-a-dia
do ginásio, ouvindo-a falar de colegas e professores, dos últimos lançamentos dos
Beatles, dos olhos de Paul MacCartney ou das letras de John Lennon. Mais tarde, tornou-se
cúmplice de cigarros fumados às escondidas pelos banheiros, corridas em motocicletas
clandestinas e aulas mortas no terraço entre brincadeiras e jogos de batalha naval. eu
contei para você mas você jura que não vai contar para o meu pai? Maria Clara também
começou a descobrir coisas novas como as crises de choro sem motivo algum, as horas
passadas ao lado da vitrola, os olhos perdidos no espaço ao som de concertos e motetos.
Há dias em que não sabe se vai conseguir sobreviver a todas as terças, quintas e fins
de semana que a esperam sem aulas de inglês. Especialmente quando o tempo começa a
escurecer, quando não há sol, não há passeios nem piscinas. As horas passam devagar e,
na escola, há o sentimento do tempo e das aulas perdidas, para que matemática,
história, geografia se tudo o que precisa aprender é inglês, se sabendo inglês
conquistará o mundo e quem sabe Archibald, conseguirá ir até Ardnamurchan onde quer que
fique e conhecer os vales verdes, as altas montanhas, o clima que sabe frio e úmido a
maior parte do ano. Quinta-feira escorre inútil, a sexta arrasta-se pelas aulas de
desenho e francês, pela geografia escamoteada no terraço, o cigarro escondido atrás das
costas. De tarde, as horas são ainda mais lentas e há o tamborilar da chuva nas
vidraças, há uma goteira na sala e uma professora irritada com a chuva, com a goteira,
com os alunos. Há também um ensaio da classe de teatro às quatro e meia e, às quinze
para as seis, há a sineta e a liberdade. Sacola as costas, Maria Clara corre feliz,
enfrenta a chuva, atravessa a rua, segue a avenida, dobra a esquerda, novamente atravessa
uma rua e, quando toca a campainha de Archibald está molhada da cabeça aos pés, a roupa
colada ao corpo, a blusa branca transparente de chuva.
Mas não é possível! Será que você não tinha um guarda-chuva, não podia
esperar uma carona?
É que não pensei que estivesse chovendo tanto assim. Nossa, estou ensopada.
Entre. Você não vai poder ficar assim. Vá até o banheiro, tome um banho bem
quente e vista o meu roupão que está pendurado ao lado do chuveiro. Depois nós
poderemos colocar as suas roupas em frente ao fogão, acabarão secando. Ande depressa.
Na cozinha, Archibald liga a cafeteira elétrica ouvindo o barulho do chuveiro. tenta
concentrar-se nas colheradas de pó, na água, mas não consegue esquecer a blusa molhada
de Maria Clara, os seios de Maria Clara, Maria Clara nua no chuveiro, a água escorrendo
pelo corpo jovem e moreno. Tenta pensar nos vinte e seis anos que os separam, na tampa da
cafeteira que não quer fechar. Volta para a sala e, acendendo o cachimbo, procura o
Saroyan da aula passada, relê o ditado de Maria Clara, os seios de Maria Clara, sua pele
molhada e brilhante...
Ficou meio grande o teu roupão, estou me sentindo ridícula.
Não há motivo. Está linda, e pelo menos não vai ficar gripada. Estou preparando
um café, achei que você precisaria beber algo quente. Vou buscar.
Maria Clara senta-se no tapete, pernas cruzadas, tenta ajeitar o roupão lilás em volta
do corpo. As mangas cobrem suas mãos, diverte-se levantando-as e olhando para as pontas
caídas como hastes dobradas. Archibald traz a bandeja, coloca-a em cima da mesa,
inclina-se sobre Maria Clara para entregar-lhe a xícara. A proximidade súbita, o roupão
entreaberto, os seios de Maria Clara criam uma atmosfera carregada que os cadernos e uma
missa de Haendel não conseguem disfarçar. Volta para a poltrona, olha-a de frente, os
cabelos molhados, o roupão, as pernas cruzadas, o rosto pálido. Maria Clara estremece,
sente que alguma coisa está acontecendo mas não sabe o que é. Imagina que Archibald a
quer, repele o pensamento que volta, intenso, segundos depois. Luta com as mangas do
roupão para segurar a xícara, ri, nervosa.
Estou parecendo uma débil mental.
Espere. Vou dobrar as mangas para você, do jeito que estão você nunca vai
conseguir beber este café.
Deixa-se escorregar da poltrona, caminha sobre o tapete com os joelhos no chão,
aproxima-se de Maria Clara. Toma-lhe uma das mãos, começa a dobrar a manga com cuidado,
como se mexesse com alguma coisa frágil e quebradiça.
Você está tremendo...!
Estou congelada.
Segura a mão tremula e fria entre as suas, levanta o rosto devagar. Os olhos de Maria
Clara em frente aos seus, o cheiro de Maria Clara, os seios de Maria Clara... puxa-a para
si, beija-lhe a testa, os olhos, a boca.
Eu te queria tanto.
Ela treme, tem medo, está feliz. A mão de Archibald atravessa o roupão, acaricia os
seios. Tenta afastá-lo.
Não faz isso.
A mão foge, sobe para os ombros, abaixa o roupão.
Archie, não.
Por que não? Eu quero você, eu amo você. Vem, você é minha. Bem quietinha,
não se mexe.
Maria Clara senta-se imóvel, a respiração ofegante. Archibald desamarra o cinto, o
roupão escorrega, Maria Clara nua, tremula de medo e de expectativa, o coração aos
saltos.
As mãos a percorrem, acariciam os seios, a barriga, procuram as pernas, escondem-se entre
as coxas.
Vem. Eu vou ensinar tudo para você, tudo. Isto é uma coisa muito mais bonita do
que o inglês, vem, muito mais, vou te ensinar tudo. Deita.
Maria Clara deita-se no tapete, olha para o lado. Tem vontade e vergonha de olhar
Archibald despir-se, mas sente seus movimentos, a camisa atirada em direção a poltrona,
os pés que empurram as calças e estremece quando o tem ao lado, quando as mãos a
envolvem e guiam suas mãos tímidas, quando os dedos percorrem seu corpo, caminhando de
leve pelas pernas, subindo sentindo-a úmida e entregue, quando o tem por cima de si, tão
suave e aflito, quando os joelhos forçam suas pernas, as palavras perdem o nexo e o mundo
explode, eu te queria tanto.
Dez anos depois, Archibald deu um tiro na boca. Teve morte instantânea. Há nove não via
Maria Clara que soube do suicídio vários meses depois, através da carta de um amigo que
a cumprimentava pelo vigésimo quarto aniversário.
Cora Rónai é jornalista, sendo hoje editora do caderno semanal Informátic@,
do jornal "O Globo". Quando da publicação do texto acima, em outubro de 1981,
na revista Status, de onde foi extraído, ela declarou: "Este conto foi escrito há
alguns anos, uma primeira (e até agora, única) tentativa de erotismo datilografado.
Escrevi outros contos, mas vivo de jornalismo, há dez anos o meu ofício também a
minha grande paixão."
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