A funda de Davi
Augusto Monterroso
Era uma vez um menino chamado Davi N., cuja pontaria e habilidade no manejo da atiradeira
despertavam tanta inveja e admiração entre seus amigos da vizinhança e da escola, que
viam nele e assim comentavam entre si quando os pais não podiam escutar um
novo Davi.
O tempo passou.
Cansado do tedioso tiro ao alvo que praticava disparando pedrouços contra latas vazias e
pedaços de garrafa, Davi descobriu um dia que era muito mais divertido exercer contra os
pássaros a habilidade com que Deus o tinha dotado, de modo que dali em diante a exercitou
contra todos os que se punham ao seu alcance, em especial contra Pardais, Cotovias,
Rouxinóis e Pintassilgos, cujos corpinhos sangrentos caíam suavemente sobre a grama, com
o coração ainda agitado pelo susto e a violência da pedrada.
Davi corria alegre até eles e os enterrava cristãmente.
Quando os pais de Davi se aperceberam desse costume do seu bom filho se alarmaram muito,
lhe perguntaram o que é que era aquilo, e denegriram a sua conduta com termos tão
ásperos e convincentes que, com lágrimas nos olhos, ele reconheceu sua culpa, se
arrependeu sincero, e durante muito tempo se aplicou em disparar apenas sobre os outros
meninos.
Dedicado anos depois às Forças Armadas, na Segunda Guerra Mundial Davi foi promovido
até general e condecorado com as cruzes mais altas por matar sozinho trinta e seis
homens, e mais tarde degradado e fuzilado por deixar escapar com vida um Pombo mensageiro
do inimigo.
Augusto Monterroso nasceu em 1921, na Guatemala. Em 1944, mudou-se para o
México e, depois de muito observar a fauna daquele país e de outros, se convenceu de que
"os animais se parecem tanto com o homem que às vezes é impossível distingui-los
deste". Assim surgiu "A ovelha negra e outras fábulas", lançado
pela Editora Record - Rio de Janeiro, 1983, com tradução de Millôr Fernandes e
ilustrações de Jaguar, de onde extraímos o texto acima, pág. 71.
Dele disse o escritor russo que se criou nos Estados Unidos, Isaac Asimov: "Os
pequenos textos de A ovelha negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso, aparentemente
inofensivos, mordem os que deles se aproximam sem a devida cautela e deixam cicatrizes.
Não por outro motivo são eficazes. Depois de ler "O macaco que quis ser escritor
satírico", jamais voltei a ser o mesmo."
Foi agraciado, em 2000, com o Prêmio Príncipe de Astúrias de Letras. Um dos
escritores latinos mais notáveis, Monterroso tem predileção por contos e
ensaios. "O dinossauro", uma de suas obras mais célebres, é considerado
o menor conto da literatura mundial: "Quando acordou, o dinossauro
ainda estava lá".
Augusto Monterroso faleceu em fevereiro/2003.
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