Último
texto
Bar
Don Juan
Antonio Callado
Quando
estacionou diante do edifício, na Lagoa, Karin já estava na calçada
à sua espera, sapatos de corda, um impermeável por cima da roupa de
banho, e, no bolso, um frasco de prata com vodca.
Escandalizou-se ao ver que Mansinho não vinha de calção de banho por
baixo da capa.
— Você
não vai cair n'água?
— E
você? Está querendo me ver, depois desse tempo todo, ou só quer
tomar banho de mar?
No
apartamento de Karin tinha uísque, vodca, sardinha e pão. Que
besteira tomar banho de mar. Foram subindo a Rua Montenegro e, ao
chegarem à praia, dobraram à direita. Resignado que estava de andar
até o Arpoador, Mansinho se animou, achando que iam parar talvez
diante do Country, mas Karin prosseguiu pela calçada. Pelas alturas
do Cinema Miramar, Mansinho teve uma dúvida atroz. Será que a Karin
queria andar pela Avenida Niemeyer até o Vidigal, a Gávea, a própria
Barra? Karin parou no fim do Leblon e obrigou Mansinho a tirar os
sapatos para andarem na beira do mar. Entre as pedras achou flores
da véspera, três copos-de-leite de talos amarrados com fita branca.
Karin declamou para o mar, restituindo as flores às ondas;
Todo
coberto de lírios
de
velas, fogos e círios
o ano
estava estendido
das
areias de Ipanema
aos
rochedos do Leblon.
Diante
do ano morto
lemanjá dá reveillon.
— O
que é isso? — disse Mansinho.
— Ora!
O poema do Murta. . -
— Você
sabe tudo de cor, hem!
—
Claro! Pois o poema foi feito para mim.
Mansinho ficou meio amuado. Karin tomou um trago de vodca. Apesar da
ressaca, Mansinho, resignado, bebeu também. Estava se sentindo
mofado, úmido.
— Por
que é que Murta depois começou a fugir de mim? Eu sempre tive tanta
vontade de ser amada por uma poeta.
—
Murta é cineasta. Pelo menos é o que ele diz.
— Quem
faz versos é poeta. Onde é que ele anda?
— Em
caso de dúvida, procure no Don Juan’s. Se formos até lá é quase
certo encontrar o Murta.
— Ele me adorou aquela noite na
areia, se lembra, de joelhos, e depois deixou a festa e veio me
procurar, andou comigo pela praia inteira, recitando os versos que
tinha feito. Mas não me propôs nada.
Mansinho deu de ombros. Puseram-se
a andar pela beira da praia, Karin apanhando conchas, cantarolando,
inventando uma música para cantar com o poema:
Dançando no gume fino
da
meia-noite lunar!
Mansinho foi ficando mais emburrado e Karin cada vez mais alegre e
cantadeira. Ao passarem pela frente da Rua General Urquiza ele
propôs que fossem para o Bar Don Juan mas Karin, sem responder,
enfiou o braço no braço dele andando e cantando. Quando chegaram à
desembocadura do canal do Jardim de Alá, sentou-se no paredão que
avançava pelas ondas cinzentas. Mansinho já tinha molhado as calças
até os joelhos e a garoa lhe pingava dos cabelos. Dois desocupados,
no paredão oposto, olhavam em frente, ou vagamente estudavam a
grande escavadeira empregada no alargamento do canal. Enquanto os
trabalhadores, na areia, enchiam a boca com a comida tirada da
marmita, a bocarra de ferro da escavadeira descansava, os dentes
imensos imobilizados em torno de uma rocha. Karin passou a mão nos
cabelos encharcados de Mansinho e tomou mais vodca.
— Fala
alguma coisa
— Você
gosta de versos e eu só tenho prosa. De mais a mais você e que deve
ter alguma coisa a contar. O que é que fez durante uma semana
inteira?
Karin
o olhou séria.
—
Aproveitei o pretexto de estudar a festa do Círio de Nazaré
e fui conhecer a tua terra.
Mansinho arregalou os olhos.
— Você
foi a Belém do Pará?
Karin fez que sim com a cabeça e
tomou as mãos de Mansinho nas suas. Mansinho teve grande desejo dela
e vontade de deitá-la ali mesmo, na areia ou até no dorso do
paredão, mas ao mesmo tempo sentiu com certa melancolia aquele
principio de enjôo que sempre lhe davam as mulheres quando passavam
do porre da posse e da boa cegueira física inicial para uma fixação
de sentimentos.
Domesticadas e ciscando o chão até
as garças viram galinhas.
Da janela do escritório do Bar Don
Juan, Aniceto viu Mansinho e Karin que chegavam da praia e ficou
pensando na Da Glória. Que estaria fazendo em Pão de Açúcar da beira
do São Francisco, ela da voz rouca e que sabia falar longa e
misteriosamente —como se tivesse aprendido a falar com o rio — mas
que era tão breve de carta e de escrita tão vazia? Tinha medo dos
escritos.
“Palavra escrita é feito passarinho na gaiola”, dizia. “Se um dia eu
receber um telegrama me mato mas não abro.”
Antonio Carlos Callado nasceu em Niterói (RJ), no dia 26 de janeiro
de 1917. Jornalista, romancista, biógrafo teatrólogo e bacharel em Direito, começou a
trabalhar, como repórter e cronista, em O Correio da Manhã. Durante a Segunda Guerra
Mundial, em 1941, foi contratado pela BBC de Londres como redator, lá trabalhando até
maio de 1947. Trabalhou também, nesse período, no serviço brasileiro da Radio-Diffusion
Française, em Paris. De volta ao Brasil, voltou a seu antigo emprego e passou a
colaborar com o jornal O Globo. Em 1960, deixou o Correio da Manhã e foi cuidar do
lançamento, no Brasil, da Enciclopédia Barsa. Após 1963, foi redator do Jornal do
Brasil, que o enviou, em 1968, ao Vietnã em guerra. Em 1974 esteve como Visiting Scholar
em Corpus Christi College, Universidade de Cambridge, Inglaterra. Passou o segundo
semestre de 1981 lecionando, como Visiting Professor, na Columbia University, Nova York.
Aposentou-se como jornalista em 1975, mas continuou a colaborar na imprensa. Em abril de
1992 tornou-se colunista da Folha de S. Paulo.
Além das atividades jornalísticas, dedicou-se sempre à literatura. Após seus dois
primeiros romances, Assunção de Salviano (1954) e A madona de cedro (1957), nos quais
persiste uma nítida preocupação religiosa a informar e até mesmo a condicionar o
transcurso da aventura e a temática, Callado se encontra com os principais
temas de sua obra através do jornalismo, e escreve livros de reportagem e obras
literárias engajadas com as grandes questões de seu tempo. Entre os mais importantes,
estão Quarup (1967), Bar Don Juan (1971), Reflexos do baile (1976), Sempreviva (1981),
que apresentam um retrato do Brasil durante o regime militar, do ponto de vista dos
opositores. Seu engajamento lhe custou duas prisões: uma em 1964, logo após o golpe
militar, e outra em 1968, após o fechamento do Congresso com o AI-5.
Teatrólogo, reuniu quatro de suas peças no volume A Revolta da Cachaça, em 1983. Uma
delas, Pedro Mico, encenada em muitas ocasiões, foi transformada em filme que teve como
ator principal o ex-jogador de futebol Pelé. Em março de 1987 participou, em Paris, do
Salon du Livre, a convite do Ministério da Cultura da França. Em novembro de 1990
representou o Brasil na semana De Gaulle en son siècle, comemorativa do
centenário do General Charles de Gaulle.
Em 1958 recebeu, na Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, a medalha da Ordem do Mérito
da República Italiana. Em 1982 foi à Alemanha, como vencedor do Prêmio Goethe, do
Goethe Institut do Rio de Janeiro, com o romance Sempreviva. Em setembro de 1985 recebeu,
pelo conjunto de suas obras, o Prêmio Brasília de Literatura, da Fundação Cultural do
Distrito Federal. Em outubro de 1985 recebeu, na Embaixada da França em Brasília, a
Medalha das Artes e das Letras, das mãos do Ministro da Cultura Jack Lang; em maio de
1986, o prêmio Golfinho de Ouro, de Literatura, outorgado pelo Governo do Estado do Rio
de Janeiro; em 1989, o troféu Juca Pato, da União Brasileira dos Escritores, por ter
sido eleito Intelectual do Ano.
Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 17 de março de 1994, Cadeira n. 8, na
sucessão de Austregésilo de Athayde, foi recebido em 12 de julho de 1994 pelo acadêmico
Antonio Houaiss.
Era membro da The Corpus Association, do Corpus Christi College, Cambridge (Inglaterra).
Faleceu no Rio de Janeiro (RJ), no dia 28 de janeiro de 1997.
Principais obras:
Esqueleto na lagoa Verde, reportagem (1953);
A assunção de Salviano, romance (1954);
A cidade assassinada, teatro (1954);
Frankel, teatro (1955);
A madona de cedro, romance (1957);
Retrato de Portinari, biografia (1957);
Pedro Mico, teatro (1957);
Colar de coral, teatro (1957);
Os industriais da seca, reportagem (1960);
O tesouro de Chica da Silva, teatro (1962);
Forró no engenho cananéia, teatro (1964);
Tempo de Arraes, reportagem (1965);
Quarup, romance (1967);
Vietnã do Norte, reportagem (1969);
Bar Don Juan, romance (1971);
Reflexos do baile, romance (1976);
Sempreviva, romance (1981);
A expedição Montaigne, romance (1982);
A revolta da cachaça, teatro, reunião de 4 peças (1983);
Entre o deus e a vasilha, reportagem (1985);
Concerto carioca, romance (1985);
Memórias de Aldenham House, romance (1989);
O homem cordial e outras histórias, contos (1993).
Texto extraído do livro RIO LITERÁRIO. Um guia apaixonado da
cidade do Rio de Janeiro, Editora Casa da Palavra
Rio de Janeiro, 2005. Págs 35 a 37.
|